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sexta-feira, 21 de junho de 2024
quinta-feira, 20 de junho de 2024
Os estupros, os abortos, as manipulações políticas misógenas e os homens "de bem" em análise de Dora Incontri
Vamos aos números, implacáveis. O IPEA, um órgão oficial, estima que no Brasil, 822 mil estupros são praticados por ano.
Os estupros, os abortos e os homens
por Dora Incontri, no Jornal GGN
Não dá para escapar deste tema indigesto, o tal Projeto de Lei 1904/2024, que prevê crime de homicídio para as meninas e mulheres que abortem com mais de 22 semanas de gestação – o que em tese pode render até 20 anos de detenção para quem pratica o aborto, enquanto estupradores podem pegar no máximo 12 anos de prisão.
O assunto é delicado e tem nuanças, que precisam ser explicadas. Realizar um aborto de um feto a partir de 5 meses tem o significado de morte de um bebê, sim. Não podemos minimizar este fato. Há casos de nascituros com 5 meses de gestação – embora raros, que sobrevivem em incubadora. Daí para frente, 6, 7, 8 meses, já se trata de um bebê quase inteiramente formado. E pela lei que vem desde 1940, o aborto em caso de estupro e em caso de risco de vida da mãe pode ser praticado em qualquer período da gestação. Note-se que nos casos de crianças que engravidam, a lei funciona nos dois sentidos: são vítimas de estupro e ao mesmo tempo correm risco de vida em levar adiante a gravidez, por não terem ainda o corpo formado.
Quis colocar isso tudo em pauta porque a facção, que se autodenomina pró-vida, mergulha nessa linha de argumentação de empatia com o feto abortado. A respeito, houve uma patética contadora de histórias, no Congresso, infelizmente espírita, levada lá por um senador bolsonarista, lamentavelmente também espírita, que fez um apelo emocional, sensacionalista e diria até histérico, com uma encenação de um aborto, do ponto de vista do feto. Muita gente está colocando uma pergunta pertinente: por que a senhora em questão não faz a encenação de um estupro?
Vamos aos números, implacáveis. O IPEA (Instituto de pesquisa econômica aplicada), um órgão oficial, estima que no Brasil, 822 mil estupros são praticados por ano. Entre 2009 e 2019, os números notificados, portanto não estimados, são os seguintes: 63.309 crianças entre 0 a 10 anos (bebês são estuprados sim!!) e 98.221 adolescentes entre 11 e 20 anos. São essas crianças e adolescentes, na maioria das vezes estupradas por familiares, incluindo pais, que serão criminalizados como assassinos, se vierem a procurar o direito que têm ao aborto, fora do tempo proposto pelo PL, alcunhado de PL do estupro.
Não temos números, mas notícias diárias, da quantidade de abusos e estupros praticados dentro de igrejas e comunidades religiosas.
Ora, são na sua maioria homens que legislam e que querem impor essa excrescência de PL. Homens supostamente religiosos, de um fundamentalismo impiedoso. Pune-se a vítima e não se faz nada para acabar com essa cultura do estupro, que dá medo a todas as mulheres, de qualquer idade (as crianças ainda não sabem, mas correm também risco em grau máximo, e como se vê, nem dentro de casa estão seguras).
É chocante abortar um feto que se mostra já um bebê formado? É chocante sim e a maioria de nós não teria nenhum gosto em realizar um aborto assim. Mas é muito mais chocante um bebê ser estuprado e uma criança de 10 anos ter que levar a cabo uma gravidez de seu próprio pai – uma situação nada incomum. Isso é o que se chama de um dilema ético, que não pode ser tratado aos gritos e legislado a toque de caixa num congresso predominantemente de homens machistas, conservadores e com grande contingente de religiosos fundamentalistas, que estão sempre querendo impor seus valores retrógrados à sociedade.
Seria sim urgente que discutíssemos medidas educativas e terapêuticas em massa, para acabar com essa tragédia do estupro de mulheres de todas as idades e do abuso sexual na infância… essas são marcas que ficam para sempre, resultando em trauma permanente, adoecimento psíquico, dificuldades sexuais às vezes insuperáveis, vidas enfim estragadas por algozes que deveriam proteger as vítimas e não as violentar.
Assim, enquanto houver no Brasil, estupros a cada 2 minutos, enquanto houver como em 2023, 172 mil crianças sem o nome do pai, enquanto tivermos, como na última década, 1,7 milhões de mães solo (a maioria negras), enquanto essa violência e esse descompromisso tipicamente masculinos ainda forem prevalentes em nossa cultura, os homens deveriam fazer um silêncio penitente e se abster de falar, condenar e legislar sobre o aborto.
E todos e todas, como sociedade, deveríamos estar trabalhando para acabar com essa estrutura do patriarcado opressor!
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
terça-feira, 18 de junho de 2024
PL do Aborto: 'São homens usando o nome de Deus por poder', diz pastora
Do UOL:
Voz progressista dentro dos evangélicos, a teóloga e pastora batista Odja Barros afirma que o PL (projeto de lei) que equipara o aborto ao crime de homicídio repete uma velha máxima usada há séculos: o uso indevido do nome de Deus por homens para manter as mulheres sob seu domínio.
Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Artigo de Valdemar Figueiredo (Dema), pastor batista
Sermão dominical pregado na Igreja sobre o PL1904/24: Criança não é mãe e a bancada evangélica não é santa, nem pura
Do Instituto Conhecimento Libera, ICL, segue o artigo de Valdemar Figueiredo:
Na quarta-feira (12/06/2024), foi aprovado na Câmara dos Deputados o requerimento de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) para que o Projeto de Lei 1904/24 tramitasse em regime de urgência. Provavelmente os patrocinadores dessa peça jurídica estão convictos que não há necessidade de diálogo, muito menos ouvir os diversos seguimentos da sociedade implicados diretamente no tema.
Não se trata de ser contrário ou favorável ao aborto. Não se trata de uma discussão moral, muito menos de uma disputa política entre conservadores e progressistas. Trata-se da perversão de uma bancada cristã no Congresso Nacional, católicos e evangélicos, que usa os rótulos eclesiásticos e as fachadas dos templos para se locupletar (enriquecimento que ocorre em detrimento do prejuízo de alguém).
O PL em questão propõe mudar o Código Penal brasileiro equiparando o aborto após 22 semanas de gestação, mesmo em casos de estupro, ao crime de homicídio simples. Caso aprovado, isso implicaria no aumento da pena máxima para até 20 anos de reclusão para as mulheres que optarem pelo aborto.
O Código Penal (artigo 128) vigente permite o aborto em três situações: (I) gravidez decorrente de estupro, (II) risco à vida da mulher e (III) anencefalia fetal (não formação do cérebro do feto). Que fique muito claro, no Brasil, persiste a criminalização do aborto com apenas três exceções que remetem a casos dramáticos, excepcionais. Segundo a nota do grupo jurídico Prerrogativas, “os dois primeiros estão previstos no Código Penal de 1940 e o último foi permitido via decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012”.[1]
Que fique registrado que a criminalização do aborto no Brasil é regra antiga e profunda, com exceções tímidas no limite das possibilidades. Portanto, o PL não é uma peça de conservadores, mas uma proposta reacionária. Antes fosse só ignorância, estamos diante do pior tipo de perversidade, a que é levada a cabo em nome de Deus.
Vamos aos dados
O médico pediatra Daniel Becker na sua coluna no Jornal O Globo na sexta-feira (14/06/2024) apresentou dados alarmantes tendo por bases o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em 2022, foram registrados 75 mil estupros no Brasil. Em 76% dos casos, as meninas que foram vítimas tinham menos de 14 anos (52 mil).
Notifica o especialista que 10% dessas vítimas eram crianças de 0 a 4 anos (7.500 bebês estuprados). 18% eram crianças de 5 a 9 anos (13.500 crianças pequenas violadas). O dramático e pavoroso é que algumas crianças já com 9 anos podem engravidar após serem vítimas de estrupo. O estupro é um fenômeno predominante familiar no nosso país. O que gera na vítima sequelas emocionais para o resto da vida. Não é só carregar uma gravidez, é carregar uma culpa que pode ser insuportável. Estima-se que “quase 70% dos estupros acontecem na casa da vítima. 86% dos abusadores são conhecidos e 64% são familiares”.[2]
Os números são sabidamente subnotificados. O sofrimento também está subnotificado e nunca poderá ser mensurado na sua real desumanidade. É perturbador saber que, conforme fartamente divulgado como repercussão deste nefasto PL, no Brasil, a cada minuto, pelo menos duas pessoas são estupradas. Trata-se de estimativa do Ipea em que “os pesquisadores cruzaram bases de dados de segurança pública e saúde, de 2019, e calcularam que 822 mil violências deste tipo ocorram no país anualmente, número que pode chegar a 2,2 milhões.”[3]
O ginecologista Olímpio Moraes, diretor médico da Universidade de Pernambuco, em entrevista ao Jornal O Globo, desloca o fenômeno da área criminal ou moral para a que efetivamente merece ser tratada: saúde pública. O impacto da gestação entre crianças e adolescentes é de tal monta que deveria alarmar a sociedade sob o ponto de vista da saúde:
Há pelo menos 14 mil gestantes abaixo de 14 anos e só 4% dessas meninas têm acesso ao aborto por estupro. Uma menina de 10 anos tem risco de morte de duas a cinco vezes maior por complicações na gestação e sequelas. Além disso, no Brasil, a principal causa de mortes de adolescentes são complicações da gravidez e suicídio devido à violência sexual.[4]
Em nota divulgada na sexta-feira (14/06/2024), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se posicionou favorável à aprovação do PL1904/24. Ainda que o debate público tenha quase que exclusivamente apontado a motivação religiosa pregada por Igrejas Evangélicas para o recuo dos direitos, historicamente, este é um tema caro à Igreja Católica. Ainda que laica, a República Federativa Brasileira nunca esteve livre da forte influência política da Igreja Católica para fazer valer o que julga ser os melhores valores. Mais cautelosos no tom, não tão estridentes como a bancada evangélica, mas absolutamente identificados com o espírito reacionário do PL 1904/24, os bispos católicos não tergiversam:
Cabe ressaltar que as 22 semanas não correspondem a um marco arbitrário. A partir dessa idade gestacional, realizado o parto, muitos bebês sobrevivem. Então, por que matá-los? Por que este desejo de morte? Por que não evitar o trauma do aborto e no desaguar do nascimento, se a mãe assim o desejar, entregar legalmente a criança ao amor e cuidados de uma família adotiva? Permitamos viver a mulher e o bebê.[5]
O Estado é laico
Necessário afirmar que é absolutamente legítimo que os cristãos tenham valores morais e os defendam. Caso uma família, evangélica ou católica, tenha a desventura de lidar com a situação de uma gravidez imposta por um agressor e mesmo assim resolver levar a gravidez adiante, não abortar, tudo bem. Para o Estado, tudo bem se as pessoas implicadas optarem pela vida tal como recomenda a CNBB e a bancada evangélica. Por questões morais uns dizem que o aborto sob hipótese alguma pode ser admitido, enquanto outros, por crença religiosa, creem que o aborto sob todas as hipóteses é pecado.
A filigrana jurídica que não pode ficar obscura no debate ético: as nossas convicções morais ou as nossas experiências de fé não podem ser impostas como força de lei. A base do Estado Democrático de Direito é a pluralidade, inclusive de crença e valores.
Enfaticamente, repito que no Brasil o aborto é criminalizado e proibido e só permitido nos casos excepcionais: se a gravidez for decorrente de estupro; se representar risco à vida da mulher; e em caso de anencefalia fetal (não formação do cérebro do feto).
Incorre em erro, seja por ignorância ou má fé, quem acentua que o aborto é legalmente permitido no Brasil o que justificaria uma cruzada medieval para colocar as coisas nos seus termos. O argumento que a maioria deve impor os seus valores às minorias é fajuto, tanto em termos da filosofia política, como em termos da boa e sadia leitura bíblica. Tudo que Jesus ensinou jamais teve ares de imperativos legais que deviam ser impostos pelos seus seguidores.
Seja no Sermão do Monte (Mateus 5, 6 e 7) em que Jesus prega sobre interioridade e dever ou nos textos constitucionais dos Estados Democráticos margeados pelos direitos fundamentais iluministas, afirmativo da inerente dignidade da pessoa humana e os seus correspondentes direitos humanos, a base comum é a responsabilidade pessoal. Seja o cristão perante Deus ou o cidadão diante do Estado, a responsabilidade é pessoal e intrasferível, exceto no caso de incapazes.
Compreensível e admissível que os cristãos queiram compartilhar os seus valores com a sociedade e o façam através do anúncio diuturno. No seguimento a Jesus, o anúncio se dá mais pela força do exemplo do que tentar, à força, impor leis dominando as estruturas das instituições do Estado.
Pelos desmandos, silêncio dos bons e insistentes tentativas de demonstração de força e testosterona, nossa geração de cristãos no Brasil está trabalhando rápido e forte para gestar uma próxima geração avessa às igrejas, não obstante com abertura para o divino e até mesmo com disposição para seguir a Jesus no sopro livre do Espírito Santo.
Os tais operadores da teologia do domínio, antibíblica e avessa às pequenas comunidades periféricas, estão vergando tanto o sentido de ser EVANGÉLICO que podem ser determinantes no curto prazo para formação de uma sociedade brasileira pós-cristã. Os sinais de um tempo sombrio estão escancarados diante dos nossos olhos.
Testemunho
Em dias estranhos, quando nas igrejas a tentação para dominar se impõe e a disposição para amar e servir se esvai, nossa alma clama pelos profetas. Profetas surgem no contrafluxo da multidão que marcha, seja para o pináculo do templo ou para o trono no palácio do poder (Lucas 4.1-13).
Profetas que buscam as meninas violentadas não para lhes dizer o que fazer, mas para amá-las como se não houvesse amanhã e apoiá-las como vítimas que são e não como criminosas.
Só quem vive nas margens pode entender o porquê Jesus estabeleceu o amor como princípio fundamental da interpretação da lei. O mestre de Nazaré não coisificou as pessoas em detrimento da divinização da lei. Preferiu relativizar a lei escrita em pedras e olhar profundamente para a pecadora. Quem escreve poesia na areia da praia não cultiva a ambição de reclamar por direitos autorais. Os escribas e fariseus entraram numa de lembrar a Jesus o que Moisés havia escrito, na pedra, sobre penas para mulheres que fossem apanhadas em flagrante adultério. Só quando a multidão que reclamava por justiça dispersou foi que Jesus se dirigiu à mulher:
Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? Respondeu ela: Ninguém, Senhor! Então, lhe disse Jesus: Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais (João 8.1-11).
Posso imaginar, ver e sentir o meu amado mestre, senhor e pastor, chegando naquela casa triste, com cortinas fechadas, escura, silenciosa. A dor da culpa não é atenuada porque escolheram não falar sobre. Preferiram dissimular como se o esfregão que retirou a mancha de sangue do chão tivesse poderes mágicos para purificar também a alma. É domingo, mas hoje a família não vai para a Escola Bíblica Dominical. Crianças e adolescentes fazem perguntas embaraçosas e é inimaginável falar na igreja o que resolveram calar em casa. Enquanto o pai prepara sem apetite o almoço, a mãe sente gosto de morte olhando alheia para o nada. O filho menor aperta o teclado do videogame com tanta força que parece socar o mundo.
No quarto, sozinha, a menina descansa o seu corpo de 10 anos que ela parece não conhecer mais. Apagou da memória o rosto do agressor, mas não consegue deixar de sentir a dor física. Sobre as dores da alma, ela sente muito, mas não entende nada. Ora se sente culpada, ora envergonhada…
Do seu quarto ouve que há alguém na porta de casa chamando. Como não estava conseguindo olhar para os pais nem brincar com o irmão, imagina receber visita! Ninguém sabia. Ninguém poderia saber. Nunca. Logo, gentilmente, ouve batidas na sua porta. Antes de abrir, avexada, recoloca a boneca na prateleira para que ninguém soubesse que ela a estava penteando.
Jesus entra, chama todos da casa para o quarto. Sem dizer nada, olha amorosamente para cada um. Observa o cão calado, mas se detém no olhar expressivo e cheio de vida da boneca que acabara de ser devolvida à prateleira. Jesus com dois passos alcança a boneca e entrega à menina. Ao ver os braços estendidos para lhe devolver a infância, ela se lança aos seus braços e em posição fetal fica por um instante eterno no seu colo. Boneca numa das mãos enquanto a outra estava suspensa para chupar o dedo, coisa que só fazia às escondidas para não parecer infantil demais.
Silencioso e plenamente ali, tendo a menina no colo, enquanto acariciava os longos cabelos dela, disse Jesus:
Filinha, eu sei que, com muita tristeza, você e seus pais resolveram interromper a sua gravidez. Talvez você tenha que aprender a lidar com a lembrança do abusador, bem como com acusadores na família, na escola e na igreja. Mas, sabe, eu te amo tanto… Eu não te condeno! Você vai ficar bem. Sabe o que eu escrevi na areia da praia enquanto os legisladores tentavam me convencer a subscrever o PL? Eu escrevia um acalanto que minha mãe cantarolava quando eu era pequeno: “A sua misericórdia vai de geração em geração sobre os que o temem. Agiu com o seu braço valorosamente; dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos (Lucas 1.46-56).” Menina, volta a brincar. Deixo a sua boneca, mas estou levando a sua culpa.
Valdemar Figueredo (Dema)
Idealizador e coordenador desde 2017 do Observatório da Cena Política Evangélica pelo Instituto Mosaico (www.institutomosaico.com.br). Pós-doutorando em sociologia pela USP. Doutor em ciência política (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ) e em teologia (PUC-RJ). Pastor da Igreja Batista do Leme e da Igreja Batista da Esperança, ambas na cidade do Rio de Janeiro.
[1] Nota do Grupo Prerrogativas sobre o Projeto de Lei 1904/24 que propõe mudar o Código Penal brasileiro equiparando o aborto ao crime de homicídio simples. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/06/grupo-juridico-diz-que-pl-antiaborto-e-abominavel-e-obriga-criancas-a-gestarem-filhos-de-estupradores.shtml. Acesso em: 14 jun. 2024.
[2] O PL do Estupro: afronta a toda a sociedade. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/daniel-becker/post/2024/06/o-pl-do-estupro-afronta-a-toda-a-sociedade.ghtml. Aceso em: 14 jun. 2024.
[3] A cada minuto, duas pessoas são estupradas no Brasil, diz Ipea. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-03/cada-minuto-duas-pessoas-sao-estupradas-no-brasil-diz-ipea. Acesso em: 14 jun. 2024.
[4] Aborto legal: ‘80% dos estupros são contra meninas que muitas vezes nem sabem o que é gravidez’, diz obstetra. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/06/14/aborto-legal-80percent-dos-estupros-sao-contra-meninas-que-muitas-vezes-nem-sabem-o-que-e-gravidez-diz-obstetra.ghtml. Acesso em: 14 jun. 2024.
[5] Nota da CNBB sobre o PL1904/2024. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/nota-cnbb-pl-1904-2024-debate-aborto/. Acesso em: 16 jun. 2024.
segunda-feira, 17 de junho de 2024
O caos atual destrutivo de um mundo mercantilizado e explorado e o caos generativo como saída salvadora em artigo de Leonardo Boff
Tudo se recompõe e gera a possibilidade de novas formas de vida e eventualmente de sociedades.
O caos atual destrutivo e o caos generativo como saída salvadora
Inegavelmente vivemos uma conjunção de crises de toda ordem. São tantas que nem precisamos citá-las. Numa palavra, estamos vivendo uma situação de grande caos.
Já há muitos anos, cientistas vindos das ciências da vida e do universo começaram a trabalhar com a categoria do caos. Este se apresenta como destrutivo de uma ordem dada e como generativo de uma nova ordem escondida dentro da destrutiva que forceja por nascer.
Realizemos este percurso: inicialmente, pensava-se que o universo era estático e regulado por leis determinísticas. Até o próprio Einstein comungava, inicialmente, desta visão.
Mas tudo começou a mudar quando um cosmólogo amador, Hubble, em 1924, comprovou que o universo não era estático, mas se encontrava em expansão e em rota de fuga, para uma direção por nós indecifrável.
Mais tarde, cientistas perceberam uma onda permanente de baixíssima intensidade, que vinha de todas as partes. Seria o último eco do big bang ocorrido por volta de 13,7 bilhões de anos atrás. Aqui estaria a origem do universo.
Neste contexto da evolução que se mostra não linear, mas que dá saltos para frente e para cima, ganhou centralidade o conceito de caos. O big bang representaria um incomensurável caos.
A evolução teria surgido para pôr ordem nesse caos originário, criando ordens novas: a miríade de corpos celestes, as galáxias, as estrelas e os planetas.
O fenômeno do caos resultou da observação de fenômenos aleatórios, como a formação das nuvens e, particularmente, o que se veio chamar de efeito borboleta.
Quer dizer: pequenas modificações iniciais, como farfalhar das asas de uma borboleta no Brasil, podem provocar, no fim, um efeito totalmente diferente como uma tempestade sobre Nova Iorque.
Isso porque todos os elementos estão interligados, tudo está relacionado com tudo e podem complexificar-se de forma surpreendente.
Fez-se a constatação da crescente complexidade de todos os fatores que estão na raiz da emergência da vida e em ordens de vida cada vez mais altas (cf. J. Gleick, “Caos: criação de uma nova ciência“, 1989).
O sentido é este: dentro do caos se escondem virtualidades de um outro tipo de ordem. E vice-versa, por detrás da ordem se escondem dimensões de caos.
Ilya Prigogine (1917–1993), prêmio Nobel de Química em 1977, estudou particularmente as condições que permitem a emergência da vida a partir do caos.
Segundo este grande cientista, sempre que existir um sistema aberto, sempre que houver uma situação de caos (portanto, fora do equilíbrio) e se constatar a conectividade entre as partes, gera-se uma nova ordem (cf. “Order out of Chaos“, 1984). No caso, a nova ordem emergente seria a vida ou uma forma nova de organizar a sociedade.
Ainda segundo Ilya Prigogine, existem no seio da vida estruturas dissipativas, num duplo sentido: elas demandam muita energia e, assim, dissipam esta energia em forma de rejeitos. Por outro lado estas estruturas dissipam a entropia e fazem dos rejeitos, base para outras formas de vida.
Nada se perde. Tudo se recompõe e gera a possibilidade de novas formas de vida e eventualmente de sociedades. Isso indefinidamente, como processo da evolução.
Tentemos aplicar esta compreensão ao destrutivo caos atual. Ninguém pode dizer que ordem pode surgir, escondida dentro desse caos. Apenas sabemos que uma ordem diferente, dadas certas condições sócio-históricas, pode irromper. Quem vai desentranhá-la e, assim, superar o caos destrutivo?
O que decerto podemos dizer é que a atual ordem caótica imperante no mundo não oferece nenhum subsídio para superar o caos.
Ao contrário, ao levá-lo avante, pode nos conduzir a um caminho sem retorno. O resultado final seria o abismo.
Bem notava Albert Einstein: “a ideia que criou a crise (diríamos o caos) não será a mesma que nos tirará dela; temos que mudar”.
Quando a humanidade se confronta com fundamentais situações caóticas que podem ameaçar sua existência — creio que estamos dentro delas —, não lhe resta outro caminho senão mudar.
Estimo que o caminho melhor é consultar a nossa própria natureza humana. Embora contraditória (sapiente e demente), ela se caracteriza por ser um projeto infinito, carregado de potencialidades. Dentro destas potencialidades podem se identificar elementos de uma ordem diferente e melhor.
Esta se fundará, necessariamente, numa nova relação para com a natureza, afetiva e respeitosa, sentindo-se parte dela; no amor que pertence ao nosso DNA; na solidariedade que permitiu o salto da animalidade para a humanidade; na fraternidade universal, baseada no mesmo código genético, presente em todos os seres vivos; no cultivo do mundo do espírito que também pertence à essência do ser humano.
Este nos torna cooperativos e compassivos e nos revela que somos um nó de relações voltadas em todas as direções até para com Aquele Ser que faz ser todos os seres. Assim sairíamos do caos destrutivos rumo ao caos generativo.
Esses seriam alguns elementos, entre muitos outros aqui não referidos, que poderiam fundar uma nova ordem e forma de habitar amigavelmente o planeta Terra, tido como Casa Comum, a natureza incluída.
E assim estaríamos salvos por ter superado o caos destrutivo rumo a um caos generativo com um outro horizonte de vida e de futuro civilizatório.
Conexões - Esquerdas e espiritualidades, Dora Incontri
Do Canal Paz e Bem:
É possível ser de esquerda e ter algum tipo de espiritualidade? É possível pertencer a alguma tradição espiritual e querer revolucionar o mundo? Esse é o tema que discutimos hoje, rompendo com os simplismo dos radicalismos de ambas as partes.
domingo, 16 de junho de 2024
Portal do José: QUE VEXAME É ESSE? JORNALÕES E BOLSONARISMO SE UNEM CONTRA CANAIS PROGRESSISTAS! ISSO REVELA...
Do Portal do José:
16/06/24 - HOJE NOSSA PAUTA vai mergulhar em situações muito importantes. No momento em que os jornalões abrem ofensiva contra canais progressistas, surge a oportunidade de rememorarmos como agem os grandes veículos de comunicação. Sigamos.
sexta-feira, 14 de junho de 2024
Lira sentiu o impacto negativo do projeto bolsonarista da Lei do Estuprador e da bancada evangélica bolsonarista
Da TV 247:
Marcelo Auler é jornalista. Repórter desde 1974, já atuou em quase todos os principais jornais do país. É comentarista na TV 247. Florestan Fernandes Júnior é jornalista, passou pelas principais redações e emissoras do Brasil, como Folha de S. Paulo, TV Globo, TV Cultura, TV Manchete. Tereza Cruvinel é jornalista, colunista e comentarista da TV 247, fundadora e ex-presidente da EBC/TV Brasil, ex-colunista de O Globo, JB, Correio Braziliense, RedeTV e outros veículos. Jeferson Miola é jornalista e integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.
Sobre o Brutalismo supremacista neofascista de extrema-direita, dito libertariano, em artigo de Franco Berardi
"A grande migração do sul e leste para o norte e oeste do mundo é o processo que mais contribui para a onda ultrarreacionária, enquanto a oposição entre o norte imperialista e o sul colonizado adquire contornos cada vez mais nítidos. Basta olhar o mapa dos países que condenam o colonialismo israelense e o dos países que o apoiam para entender a geografia do choque de época que está se delineando", escreve Franco Berardi, filósofo, escritor e agitador cultural italiano, em artigo publicado por El Salto, 28-05-2024.
Do Instituto Humanitas Unisinos:
Eis o artigo de Franco Berardi.
Reflexões sobre a cúpula de Madri em que se reuniram os líderes mundiais do capitalismo 'gore' (sangrento) e formação do Anthropos 2.0.
Dinâmica profunda da onda nazilibertariana
A cúpula da ultradireita branca ocidental que teve lugar em Madri em 29 de maio foi a culminação de um processo que escapa às categorias da política moderna. Continuamos a interpretá-lo com as categorias que temos: democracia, liberalismo, socialismo, fascismo, etc... Mas acredito que estas categorias interpretativas da política não captam a essência deste processo, que não é realmente novo no plano enunciativo, programático, mas que é radicalmente novo no plano antropológico e psicocognitivo. As declarações dos líderes da direita mundial não explicam a força disruptiva do movimento que ninguém parece capaz de deter com algumas exceções como Colômbia, Brasil e a Espanha socialista, bastiões de resistência humana.
As dinâmicas tradicionais da democracia parlamentar e da luta social parecem ter sido superadas, como se um ciclone dotado de um poder inaudito arrasasse as defesas que a sociedade construiu após a Segunda Guerra Mundial. A cúpula de Madri reuniu formações que convergem no supremacismo branco ocidental e não nos movimentos que lideram países como a Índia de Modi, exemplo de supremacismo não branco, e a Rússia de Putin, exemplo de supremacismo não ocidental.
Na segunda metade de 2024 é possível que os supremacistas de direita ganhem a presidência dos Estados Unidos e mudem a maioria no Parlamento Europeu, aliando-se com o centro. Mas mesmo que a direita não se impusesse na Europa e os Democratas ganhassem as eleições norte-americanas, isso não mudaria muita coisa, porque nas questões fundamentais, sobretudo nas questões relativas ao rearmamento, à guerra e à mudança climática, já não há distinção entre os ultradireitistas e os governos de centro. Pelo contrário, na situação atual a vitória do lepenismo nas eleições de junho e a vitória de Trump em novembro teriam o efeito de fragmentar a unidade ocidental na guerra contra a Rússia.
Mas o objeto da minha reflexão não é o resultado das eleições de 2024. O que me interessa aqui é compreender a dinâmica antropológica e não meramente política que transformou as sociedades do Ocidente e da maior parte do planeta depois de ter destruído o movimento organizado do trabalho e desativado uma após outra as instituições internacionais da era liberal-democrática, começando pela ONU. Pode-se reduzir o que está ocorrendo a um retorno do fascismo histórico?
Eu diria definitivamente que não: o nacionalismo fascista continua sendo a principal referência da linguagem e da mentalidade da classe política que cavalga a onda reacionária porque se trata de pessoas de escassíssimo nível intelectual carentes da capacidade de encontrar conceitos e palavras à altura da força que a transformação antropológica colocou à sua disposição. Parece-me que não há consciência da direita à altura da potência da direita. A brutalidade, afinal, não costuma ser consciente de si mesma.
O que está surgindo é um fenômeno de proporções gigantescas que não pode ser explicado com as categorias da política porque mergulha suas raízes na mutação tecnoantropológica que a humanidade experimentou nas últimas quatro décadas e porque constitui a saída do hiperliberalismo, que fez da competição (ou seja, da guerra social) o princípio universal das relações inter-humanas.
As explicações políticas da onda brutalista libertariana apenas captam aspectos marginais do fenômeno: os democratas liberais sustentam que a ordem política está abalada pelo soberanismo autoritário. Os marxistas, ou muitos deles, interpretam o que está ocorrendo como um retorno do fascismo histórico após os erros cometidos pelo movimento operário organizado. Mas nenhum deles explica o mais importante, a qualidade antropológica e psíquica que subjaz à adesão massiva aos movimentos ultrarreacionários.
O que é preciso entender não é o significado das declarações de Trump, Milei, Netanyahu ou Narendra Modi, mas as razões pelas quais uma maioria crescente da população planetária abraça com entusiasmo a fúria destrutiva desses condotieros. Ao contrário do nazifascismo histórico, que praticava uma economia estatista, a onda supremacista funde os lugares comuns do racismo e do conservadorismo cultural com uma acentuação histérica do liberalismo econômico: liberdade para ser brutais. Essa novidade é suficiente para explicar o sucesso avassalador da mistureba intelectual que em toda parte suscita o entusiasmo das multidões? Devemos pensar que as multidões seguem Trump apesar de suas flagrantes mentiras, apesar de seu machismo de baixa categoria? E que as multidões israelenses apoiam o governo fascista apesar do extermínio de crianças palestinas, e que a maioria dos argentinos vota em Milei apesar da motosserra com que se dispõe a destruir o Estado de bem-estar e a matar de fome milhões de trabalhadores? Ou talvez seja necessário inverter o raciocínio?
Adiantei a hipótese de que estamos diante de uma verdadeira inversão do juízo ético: os norte-americanos votam em Trump precisamente porque ele é um violador e um mentiroso, os israelenses apoiam Netanyahu precisamente porque ele pratica o genocídio, compensando uma profunda e inconfessável necessidade de reparação dos descendentes das vítimas de um genocídio passado. E os jovens argentinos seguem Milei porque acreditam que, finalmente, os melhores poderão sobressair e os demais morrerão de fome como merecem.
A novidade que devemos compreender é a qualidade psíquica, cognitiva, antropológica do Anthropos 2.0. A inversão cínica do juízo, o entusiasmo pela violência racista, implicam uma perversão da percepção e da elaboração psíquica, mesmo antes de ser moral: capitalismo gore, como define Sayak Valencia a realidade mexicana.
Brutalismo social
Ao fazer da competição o princípio universal das relações inter-humanas, o neoliberalismo ridicularizou a empatia pelo sofrimento do outro, erodiu os fundamentos da solidariedade e, com isso, destruiu a civilização social. Quando Milei afirma que a justiça social é uma aberração, não faz mais do que legitimar o direito do mais forte e galvanizar a ilusão de massas de indivíduos jovens (na maioria homens) convencidos de que estão dotados da força necessária para ganhar de todos os outros. Essa crença não se desmonta facilmente, porque quando amanhã esses indivíduos forem, como já são, miseráveis solitários empobrecidos, apenas culparão de sua derrota os imigrantes, ou os comunistas, ou Satanás, conforme sua psicose preferida.
Enquanto se condena a justiça social como uma aberrante intromissão do socialismo de Estado na liberdade dos indivíduos, naturaliza-se o selvagerismo competitivo: na luta pela vida, quem não estiver à altura das circunstâncias merece morrer. A empatia não é compatível com a economia da sobrevivência, de fato é autolesiva para quem a pratica. Como diz Thomas Wade no romance de Liu Cixin The Dark Forest, 2008 (A Floresta Sombria, 2023): “Se perdermos nossa humanidade perdemos algo, se perdermos nossa bestialidade perdemos tudo”. O brutalismo se torna o fundamento da vida social.
Tecnologia celular e grande migração
Em geral, o marxismo subestimou a questão demográfica após Marx criticar as teses malthusianas em meados do século XIX. Marx estava certo ao criticar Malthus, que previu que o crescimento demográfico causaria transtornos sem levar em conta a evolução técnica da produtividade. No entanto, os marxistas erraram ao não considerar as consequências da extraordinária aceleração possibilitada pela medicina e pelo progresso social. O salto demográfico de 2,5 bilhões de pessoas vivas no planeta em 1950 para 8 bilhões 70 anos depois resultou em uma intensificação sem precedentes da exploração dos recursos da Terra e levou, acredito que inevitavelmente, à devastação do meio ambiente planetário.
O capitalismo liberal tem suas falhas, mas acredito que nenhum sistema de produção poderia ter atendido às demandas provocadas pela explosão demográfica sem efeitos catastróficos tanto sobre a ecologia planetária quanto sobre a percepção psíquica do outro: em condições de superpopulação, o inconsciente coletivo, em seu modo contemporâneo de inconsciente conectivo, já não é capaz de perceber o outro como amigo, pois, na verdade, qualquer outro indivíduo é uma ameaça à sobrevivência.
Na década de 1960, o etólogo John Bumpass Calhoun falou sobre um colapso do comportamento nesse sentido (behavioral sink). A devastação ecológica torna áreas cada vez mais extensas do planeta inabitáveis e impossibilita o cultivo de vastas regiões. É compreensível que as populações do Sul global (ou seja, as regiões que sofreram os efeitos da colonização e sofrem especialmente os efeitos das mudanças climáticas) desejem se deslocar para o Norte global (ou seja, a região que desfrutou dos benefícios da exploração colonial e sofreu menos, até agora, as consequências das mudanças climáticas). Também é compreensível (embora imoral, mas o julgamento moral vale tanto quanto um dois de paus nessa conjuntura) que os habitantes do Norte global temam a ideia de que massas cada vez maiores se desloquem do Sul global para o Norte global. Por isso, a grande migração empurra e continuará a empurrar as populações do Norte para posições abertamente racistas. Por isso, o genocídio já é, e provavelmente será cada vez mais, uma técnica de controle dos movimentos populacionais. Por isso, os europeus fazem todo o possível para que milhares de pessoas morram afogadas no mar ou dispersas nos desertos do Norte da África.
Em romance Gun Island (2019), Amitav Gosh relata o ciclo comunicativo entre telefone celular e migração:
Já não estamos no século XX. Não é necessário um megacomputador para acessar a rede. Basta um telefone, e agora todos têm um. E não importa se você é analfabeto. Você pode encontrar o que procura simplesmente falando; seu assistente virtual cuidará do resto. Você ficaria surpreso com a rapidez e eficiência com que as pessoas aprendem. Assim começa a jornada, não comprando um bilhete e tirando um passaporte. Começa com um telefone e a tecnologia de reconhecimento de voz.
Onde você acha que eles aprendem que precisam de uma vida melhor? Droga, de onde você acha que eles têm uma ideia do que é uma vida melhor? De seus telefones celulares, claro. É lá que eles veem fotos de outros países; é lá que veem anúncios em que tudo parece fabuloso; veem coisas nas redes sociais, posts de vizinhos que já fizeram a viagem [...] então, o que você acha que eles fazem? Voltam a plantar arroz? Você já tentou plantar arroz? Todo o dia agachado até o chão, sob o sol, com cobras e insetos à sua volta. Você acha que alguém quer voltar a esses campos depois de ver as fotos de seus amigos tomando um café com leite caramelizado em um café de Berlim? E o mesmo telefone celular que lhes mostra essas fotos também pode colocá-los em contato com intermediários [...] digamos que um cara peça asilo na Suécia. Ele precisará de uma história confiável. Não uma dessas histórias banais. Uma história como as que querem ouvir lá. Digamos que o cara morreu de fome, porque seus campos foram inundados: ou digamos que toda a aldeia adoeceu devido ao arsênico presente no solo; ou digamos que o cara foi espancado pelo seu senhorio, porque não podia pagar suas dívidas. Nada disso importa aos suecos. Os suecos gostam de política, religião e sexo. Você precisa de uma história de perseguição, se quiser que eles te escutem. É assim que ajudo meus clientes, fornecendo-lhes esse tipo de histórias (Amitav Gosh, "L’isola dei fucili", Vicenza, Neri Pozza, 2019, p. 74-76).
A grande migração do sul e leste para o norte e oeste do mundo é o processo que mais contribui para a onda ultrarreacionária, enquanto a oposição entre o norte imperialista e o sul colonizado adquire contornos cada vez mais nítidos. Basta olhar o mapa dos países que condenam o colonialismo israelense e o dos países que o apoiam para entender a geografia do choque de época que está se delineando. Mas não se deve acreditar que a brutalidade pertence apenas ao mundo branco ocidental: a Rússia de Putin não é ocidental e a Índia de Modi não é branca, mas ambos compartilham as características essenciais do brutalismo e da indiferença ao genocídio. A possibilidade de uma revolução anticolonialista tinha perspectivas progressistas no marco do internacionalismo operário, mas este parece ter desaparecido do horizonte da história. E o fim do internacionalismo abriu a porta para o apocalipse que estamos vivendo.
Curva demográfica e conclusões provisórias
Devemos considerar o fato de que a expansão demográfica, que recua no Norte global, continuará em escala mundial até que a população mundial atinja, de acordo com as previsões, os dez bilhões de habitantes. É verdade que alguns demógrafos preveem que, nesse momento, em meados do século, a população da Terra começará a diminuir a um ritmo semelhante ao que cresceu no século passado. Na opinião de Dean Spears, economista e demógrafo da University of Texas em Austin, pode-se desenhar uma curva que sobe vertiginosamente de dois mil para dez mil milhões, atinge seu máximo por volta de 2040 e depois desce com a mesma precipitação.
Pelo menos três fatores contribuem para esse colapso da natalidade, que não analisarei aqui: o colapso da fecundidade masculina, a relutância feminina em gerar as vítimas do holocausto climático e bélico e a tendência da sexualidade a desaparecer como consequência da hipersemiotização do desejo. Mas é totalmente previsível que a brutalidade política e moral que se impõe por toda parte, combinada com o crescente poder das armas de destruição em massa e a racionalidade amoral da inteligência artificial aplicada aos sistemas de armamento, resulte no colapso final da civilização humana antes que a curva demográfica entre em sua fase descendente.
Podemos esperar um refluxo da tendência que venho analisando neste texto? Para responder a isso, devemos considerar que o auge do brutalismo libertariano reuniu e está reunindo uma energia que parece surgir da dinâmica profunda da evolução tecnológica, psíquica e cognitiva da humanidade. Tal energia não pode ser freada pela ação voluntarista protagonizada por sujeitos políticos sociais e culturais cada vez que não se percebem de modo algum no horizonte. Por isso, temo que esta onda só possa ser detida quando essa energia tiver produzido todos os efeitos de que é capaz, da mesma forma que o Terceiro Reich só se deteve quando destruiu tudo o que podia destruir, inclusive a Alemanha. Mas a força destrutiva de que dispõe o Terceiro Reich global do nosso tempo é suficiente para apagar todo traço de vida humana do planeta.
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quinta-feira, 13 de junho de 2024
Bolsonarismo é um projeto da teocracia fundamentalista evangélica. Artigo de Alex Solnik
"O que eles querem é transformar o Estado Democrático de Direito numa ditadura religiosa, na primeira teocracia evangélica do mundo", diz Alex Solnik
Fala-se muito e com razão que o bolsonarismo é uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, mas isso não é tudo; ele também é uma ameaça ao Estado laico, o que ficou mais evidente na Avenida Paulista, no discurso de Michelle Bolsonaro, a mais ousada porta-voz da vertente religiosa do movimento, no qual Bolsonaro é o senhor as armas e ela, a senhora das almas.
“O Brasil é do Senhor” bradou ela, afrontando a todos nós que sabemos que o Brasil é dos brasileiros. “Eu creio em Deus todo poderoso capaz de curar nossa nação”, insistiu nessa ofensa a todos nós que construímos a nação e curamos nossas dores todos os dias.
Bastam essas duas frases para perceber que não se trata apenas de eleger Bolsonaro, o projeto é muito maior do que isso.
É um projeto de poder que começou em 1989, quando Fernando Collor de Mello pediu apoio a Edir Macedo na eleição presidencial, e em contrapartida abriu as portas da política para ele e sua Igreja Universal do Reino de Deus.
Na festa da posse, a certa altura Edir tirou os sapatos, ficou só de meias. “Temos que pisar com os pés o território que queremos conquistar”, explicou ao seu acompanhante, um ex-deputado federal.
Hoje, Edir é dono de um partido, o Republicanos, e seu líder é candidato a suceder Lira na presidência da Câmara.
O objetivo de demolir o Estado laico ficou patente no formato do ato infame, convocado por religiosos, mais precisamente pelo líder evangélico Silas Malafaia, e não por políticos.
Os políticos ficaram a reboque dos pastores. Políticos-pastores ou pastores-políticos? A simbiose é tal que não dá para saber onde termina um e começa outro.
O poder que eles almejam não é eleger um presidente da República por quatro ou oito anos, submetido aos parâmetros da Constituição Federal, dentro das regras que nos guiam desde a Proclamação da República e depois ir para casa.
O que eles querem é transformar o Estado Democrático de Direito numa ditadura religiosa, na primeira teocracia evangélica do mundo.
Essa é a forma mais fácil de manter o poder.
Se a nação é do Senhor, o presidente é seu representante, e todos têm que obedecê-lo. Quem desobedece ou desafia o Senhor tem que ser castigado e quem o louva será premiado com a vida eterna.
Se a Nação é do Senhor, a Bíblia é a constituição do país.
Se a Nação é do Senhor não há porque haver eleições.
A primeira tentativa, com Bolsonaro à frente, fracassou. Mas tudo indica que eles não pretendem desistir.
Conceder isenção fiscal a igrejas só fortalece esse projeto de poder.
Anistiar os golpistas de 8/1, também.
Artigo do ex-primeiro ministro de Portugal: Diante do avanço do neonazismo da extrema-direita, a Sorte da Europa joga-se na França
Na desgraça desta noite eleitoral ( do dia 09 de junho, nas Eleições para o Parlamento Europeu), o presidente Macron foi o único político europeu a ver claro e a tomar decisões imediatas
A Sorte da Europa joga-se em França
Um dos aspectos mais deprimentes do projeto europeu foi sempre o seu governo burocrático (o governo de ninguém, na feliz expressão de Hannah Arendt) e a sua incapacidade para reconhecer algum problema.
O Brexit nunca foi um problema para os europeus, mas para os ingleses; a austeridade econômica não tinha alternativa; os refugiados eram apenas migrantes ilegais.
As políticas eram as melhores, a compreensão delas é que nem sempre estava à altura da excelência. Como poderia, aliás, ser de outro modo se a política europeia é conduzida por funcionários competentes, zelosos e devidamente colocados ao abrigo de qualquer eleição? Aqui, neste mundo irradiante e luminoso, o saber técnico não é importunado por essa coisa maçadora, demagógica e impreparada chamada vontade popular. E, no entanto, a realidade às vezes é forte demais — não, não está tudo bem.
O Brexit foi um rude golpe na União Europeia que se viu amputada de uma potência econômica e de um actor político mundial; a austeridade nunca foi uma política económica mas um ajuste de contas com o Estado social europeu; os cadáveres dos refugiados nas praias europeias acabaram de vez com a imagem da Europa fiel ao direito internacional e à Carta Universal dos Direitos Humanos. Não, não está tudo bem.
Nestas eleições, a coisa piorou. A extrema direita alcançou o maior número de lugares de sempre no Parlamento Europeu. Ganhou em França com o dobro dos votos do partido do presidente, ganhou na Itália, onde o partido herdeiro de Mussolini está no poder há mais de um ano e ficou em segundo lugar na Alemanha, onde o partido AfD teve mais votos do que o partido social-democrata que está no poder.
Nas três maiores economias europeias a extrema direita alcançou resultados extraordinários. No entanto, para os burocratas europeus tudo correu normalmente — temos ainda maioria no Parlamento, dizem. O problema é que, quando se trata da extrema direita, perder a maioria significa que não costuma haver outra oportunidade para a reconquistar.
Na desgraça desta noite eleitoral, o presidente Macron foi o único político europeu a ver claro e a tomar decisões imediatas. O que aconteceu foi mau demais para disfarçar. É preciso enfrentar o problema e a República não se sustenta dando sinais de covardia. Vejo por aí muita gente preocupada com a táctica — não será arriscado? A extrema-direita não poderá vencer? Sim, pode. Claro que pode. Mas, nesse caso, será o povo, não os políticos da República, a assumir as responsabilidades.
Este pântano de ambiguidade política não pode nem deve continuar. Há duas coisas que os democratas não podem nunca fazer — a primeira, é ter medo de eleições, a segunda é ter medo de eleições. Sim, é preciso dizê-lo duas vezes: não temer a vontade popular. E se a disputa pelo projeto europeu, se a batalha pelo projeto de paz, de liberdade individual e de justiça social se der em França eu fico satisfeito. Ali sempre foi terreno da República. A sorte da Europa joga-se em França.
Ericeira, 11 de junho de 2024
*José Sócrates foi primeiro-ministro de Portugal de 2005 a 2011
Fonte do texto: ICL Notícias