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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Por que a desigualdade aumenta muito na onda neoliberal, enriquecendo muito mais a minoria mais rica e empobrecendo todos so demais por Aldo Fornazieri



Os capitalistas e seus representantes políticos, hoje, não têm a quem temer. Instrumentalizaram as democracias para atender os seus interesses.
Foto Observatório do Terceiro Setor

Por que a desigualdade aumenta

por Aldo Fornazieri, no GGN

Estudos de pesquisadores e dados de instituições multilaterais a exemplo do Banco Mundial são unânimes em apontar o aumento da desigualdade no mundo. Com ela aumenta também a fome. Algumas projeções indicam que esta tendência se projeta para as próximas décadas configurando uma possível situação crítica por volta de 2050 se a tendência não for revertida. O alastramento dos desastres ambientais é um fator que potencializa o advento de crises e conflitos sociais e políticos por conta da falta de recursos necessários a uma vida digna. A revolução tecnológica em curso, com impactos no mundo do trabalho, também é um fator que concentra riquezas. Hoje, por exemplo, as cinco maiores empresas do mundo são empresas de tecnologia.
O Brasil ocupa uma posição indigna no ranking da desigualdade. Somos um dos países mais desiguais do mundo. A situação vem se mostrando cada vez mais crítica. Dados divulgados recentemente pelo IBGE mostram que a renda dos mais ricos cresce e a dos mais pobres cai. Nada menos do que a metade da população brasileira vive com até R$ 413,00 por mês. Trata-se de um dado assustador e inaceitável. Mais do que isto: levantamento de Pedro Fernando Nery mostra que o Brasil tem uma Uganda dentro dele. A Uganda é um dos países mais pobres da África e do mundo. De acordo com o levantamento, os 42 milhões de brasileiros mais pobres têm uma renda média igual à população da Uganda. Calcula-se que a Uganda tenha cerca de 44 milhões de pessoas, a maioria esmagadora de miseráveis.
Certamente existem vários fatores que contribuem para a concentração de riquezas e aumento das desigualdades no mundo, dentre eles a lógica concentradora do capitalismo e os efeitos concentradores das revoluções tecnológicas. Mas ocorre que os conflitos distributivos sempre são decididos, em última instância, na esfera política, pela via do conflito político. A questão de fundo é a questão do poder. Este problema é deliberadamente escamoteado pelos pesquisadores e técnicos aliados ao sistema do capitalismo. E ele é ignorado pelas esquerdas e pelos movimentos sociais.
O fato é que hoje existe um claro desequilíbrio político em favor do capital. Este desequilíbrio tem várias razões. O fim da luta sistêmica é uma das razões principais. Isto quer dizer: hoje existe um sistema único. O capitalismo não tem mais um inimigo sistêmico como era o sistema comunista ou soviético. A luta sistêmica era um fator que favorecia um equilíbrio político e distributivo maior entre o capital e o trabalho no interior do capitalismo.
Os capitalistas e seus representantes políticos, hoje, não têm a quem temer. Instrumentalizaram as democracias para atender os seus interesses. As forças de centro-esquerda e esquerda sequer lhes opõem uma luta pelo socialismo. Essas forças fazem parte do sistema. Os partidos de centro-esquerda e esquerda também são partidos da ordem. As soluções que propõem para os problemas se situam no marco do capitalismo predatório.
As revoluções tecnológicas proporcionaram também uma transformação radical no mundo da produção, mudando as relações entre o capital e o trabalho. Na era da sociedade industrial os sindicatos fabris fortes, interligados a partidos trabalhistas e socialistas fortes, eram capazes de estabelecer certas condições de equilíbrio nas negociações com o capital, seja na esfera sindical, seja na esfera dos parlamentos e dos acordos que implicavam a participação do governo. Assim, direitos trabalhistas e sociais eram conquistados e assegurados, até porque havia um certo consenso entre a centro-direita e a centro-esquerda no sentido de garantir determinados padrões de Estado de bem estar social. O neoliberalismo e a extrema-direita romperam esse consenso.
As revoluções tecnológicas, além de reduzirem drasticamente o número de trabalhadores fabris, deram mobilidade ao capital físico, facilitando o seu deslocamento dentro de um mesmo país, de um país para outro país e até mesmo deslocamento intercontinental. Isso conferiu enorme poder de barganha ao capital, tanto frente aos sindicatos, quanto frente ao poder público. Os sindicatos perderam força e as greves perderam relevância. O poder público se esmera em conceder benefícios e isenções fiscais ao capital. Nem os sindicatos e nem os partidos de esquerda foram capazes de elaborar estratégias que os  retirassem da defensiva história e os recolocassem no jogo de um contrapoder em relação ao capital e aos termos do conflito distributivo por ele ditados. Hoje, a rigor, o capital e suas representações políticas não precisam mais exercer a hegemonia nos termos de concessões aos debaixo para conseguir dirigir, nos termos colocados por Gramsci. O capital exerce um hegemonismo impositivo. Ele exerce uma autocracia disfarçada de democracia.
Os altos salários das burocracias e dos dirigentes sindicais, as benesses, privilégios e altos salários dos dirigentes e dos representantes políticos dos partidos de centro-esquerda e esquerda geram uma esquerda das camisas engomadas, dos punhos de renda, das pulseiras e adornos de ouro, da boa vida, integrada ao sistema capitalista. As populações periféricas foram sendo abandonadas. Nos governos, as esquerdas lhes concedem programas compensatórios, as migalhas do capital.
As políticas da moralidade, as lutas e bandeiras dos novos movimentos sociais – mulheres, etnias, LGBTs, movimentos ecológicos etc. – também não estão sendo capazes de gerar uma perspectiva transcendente ao capitalismo predatório. Promovem lutas, demandas e reivindicações que se situam nos marcos desse mesmo capitalismo. Alguns analistas da globalização chamam a atenção para o fato de que muitas dessas causas e lutas ligadas à política da moralidade são financiadas por fundações do grande capital, visando conferir uma face mais humanizada ao capitalismo e uma aparência de uma luta contra-hegemônica.
O capitalismo e seus representantes políticos só cederão se existirem forças políticas organizadas que sejam capazes de representar ameaças e impor temor ao sistema de poder estabelecido. Os programas de receituários compensatórios e de reformismos fracos dos partidos de esquerda não impõem este temor. O que impõe algum tipo de temor hoje são as rebeliões das multidões, pois não há forças militares capazes de contê-las. Ocorre que as rebeliões das multidões são quase espontâneas. Não têm direção e sentido e não tem organizações que expressem força política e social própria. Expressam gritos desesperados contra as desigualdades, as injustiças e a falta de perspectivas. Em que pese o calor e a excitação que provocam, tristemente, tendem a se esvair com poucas conquistas, subjugadas pelo mal estar do nosso tempo.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Riscos que vão além da privatização: indícios da lógica de financeirização embutida no elitista programa bolsonarista Future-se, por Ana C. Fernandes



A crise de 2008 não diminuiu seu apetite por transações fictícias, ao contrário, impulsionou-lhe a buscar novas fronteiras de realização, com apoio de governos associados à facilitação e expansão de sua dinâmica acelerada.
Embora o Future-se tenha sido tratado por inúmeros analistas, não foram levantados aspectos acerca dos riscos de securitização do patrimônio (e das dívidas em geral) que podem ser produzidas pelo programa no sistema de universidades e institutos federais, acompanhando fenômeno em crescimento no capitalismo contemporâneo. Mais que um risco de privatização, o Future-se pode significar a introdução na esfera da educação superior da lógica de valorização financeira que mais cresce e sobre a qual a reprodução capitalista busca se sustentar na atualidade. A crise de 2008 não diminuiu seu apetite por transações fictícias, ao contrário, impulsionou-lhe a buscar novas fronteiras de realização, com apoio de governos associados à facilitação e expansão de sua dinâmica acelerada.

Riscos que vão além da privatização: indícios da lógica de financeirização embutida no Future-se

Ana C Fernandes (UFPE, Programa de Pós-Graduação em Geografia)


Parafraseando o recém-empossado presidente da Andifes, “existem coisas novas e interessantes nesse programa; mas as coisas interessantes não são novas, e as novas, essas sim, não são interessantes”. Lembrando que o texto divulgado pelo MEC mais suscita perguntas do que esclarece, quero aqui chamar a atenção para uma das “coisas novas” contidas no programa Future-se, inscrita no primeiro dos três eixos que compõem o programa, relativo a “gestão, governança e empreendedorismo”, talvez o eixo que abrigue a maior concentração das “coisas não interessantes”. Em que pese todos os demais aspectos corretamente apontados nas análises já divulgadas, que fundamentam posições críticas ao programa, particularmente no tocante à autonomia universitária (ameaçada de variadas formas pelo programa), o foco da presente análise diz respeito aos indícios de transformação do patrimônio imobiliário das IFES em “matéria prima” para ganhos financeiros com base na emissão e comercialização de papéis no mercado de capitais, a exemplo de títulos de securitização.
Securitização é uma prática financeira que consiste em agrupar vários tipos de ativos (especialmente títulos de crédito, a exemplo de faturas, empréstimos e impostos a receber, entre outros) em portfolios, convertendo-os em títulos padronizados, lastreáveis e revendidos no mercado de capitais, no país e no exterior. A prática de securitização proporciona conversão de uma dívida (duplicatas, cheques, notas promissórias) em título com lastro reconhecido, para ser negociável entre instituições financeiras, tais como bancos, distribuidoras de valores ou fundos de investimento, rentabilizando capitais investidos.
Como argumenta Aalbers (2008), trata-se de uma prática que transforma, portanto, bens imóveis em ativos de grande liquidez, ativos relativamente não líquidos em títulos imobiliários líquidos, transferindo os riscos a eles associados para os investidores que os compram. Desvincula-se dos imóveis a sua natureza fixa e, consequentemente, limitada para os padrões acelerados e voláteis próprios da especulação financeira, os quais passam a competir diretamente com outros investimentos financeiros. Desta forma, a securitização de bens imóveis possibilitou uma extraordinária expansão do mercado financeiro, contribuindo para elevar o influxo de dinheiro em direção a mercados de capitais e imobiliários e, consequentemente, para aprofundar a volatilidade destes últimos mercados.
Nesta lógica, ativos considerados estratégicos pelos investidores (especialmente investidores institucionais, como fundos de pensão) são títulos do Tesouro Americano e de alguns outros países, ações blue-chip e produtos de “renda imobiliária”, tais como hipotecas e bens imóveis de grandes projetos de incorporação imobiliária. Estas três categorias de investimentos, continua Aalbers (2017), são estratégicas por disporem de garantias consideradas de alta qualidade (chamadas de HQC, sigla para high-quality collateral). Segundo o autor, existem grandes e crescentes estoques de liquidez em busca de HQC (1), o que torna a incorporação imobiliária, em geral, e as finanças orientadas para a provisão de habitação, em particular, uma vez liberados à securitização, elementos centrais na financeirização em curso.
Entretanto, assim como a financeirização no contexto norte-americano, onde alcançou sua escala mais radical, levou as pessoas a aceitar riscos ao adotar a securitização de suas moradias, a lógica das finanças procura atrair outros campos “não-financeiros” da sociedade contemporânea para sua dinâmica, em sua constante busca por ampliação de mercados. Entre outros campos, vislumbra-se o da educação superior, já incorporado por meio da securitização de dívidas imobiliárias das instituições privadas, bem como dos empréstimos estudantis. A redução de entraves à securitização do patrimônio imobiliário das universidades e institutos federais consubstanciada no programa Future-se representa, assim, uma expansão extraordinária desta lógica financeira no Brasil. Este programa consiste, ao meu ver, antes de mais nada, a retomada de uma estratégia desenhada nos anos 1990 com vistas à abertura de fronteiras para a “comoditização”(2) do ensino superior federal. À semelhança do que observou Pereira (2017), no caso da provisão de habitação brasileira recente, trata-se de tentativa de penetração da lógica abstrata e de acelerada temporalidade de circuitos financeiros, crescentemente especulativos, própria da conexão entre financeirização e neoliberalismo que preside a reprodução de valor no capitalismo globalizado contemporâneo, como acima detalhado.
As primeiras tentativas de expansão do mercado de securitização no Brasil têm lugar durante o governo FHC, mas um conjunto de fatores envolvendo as elevadas taxas de juros praticadas no país tornavam o investimento neste novo mercado menos atrativo. Com o programa Minha Casa Minha Vida, e o crescimento da demanda interna, o processo de securitização avança bastante no país. Entretanto, a crise econômica vai alterar a estratégia dos agentes envolvidos: agora, são a queda das taxas de juros e a mudança de lógica da política de educação superior do atual governo, os elementos que vão propiciar a constituição de um ambiente legal satisfatório para a retomada do processo.
Pode-se supor que investidores financeiros vislumbrem no Future-se a abertura de uma importante porta de acesso para a crescente expansão de tais práticas financeiras, em constante busca de oportunidades de investimento no momento em que o modelo anterior de valorização a partir de juros extraordinariamente elevados está inviabilizado (ao mesmo momentaneamente). Dessa forma, não só pretendem transformar o patrimônio imobiliário das IFES em ativos fictícios (títulos securitizados, debêntures etc.), como também promovem ambiente favorável nas universidades e institutos federais à ampliação da financeirização, provendo a indústria financeira das novas “matérias primas” lastreáveis de que necessitam para se expandir no país, contaminando assim o sistema universitário por práticas e lógicas especulativas, como aquelas observadas por Pereira (2017) e Canettieri (2017), no caso da provisão de habitação e da política urbana, respectivamente.
Sem esclarecer devidamente, o programa prevê medidas para facilitar a “cessão de uso, concessão, comodato, fundo de investimento imobiliário e parcerias público-privadas” de modo a tornar mais eficiente a gestão imobiliária de ativos pertencentes a IFES (ou à União por estas utilizadas). Ao mesmo tempo, prevê resgatar artigos vetados da Lei 13.800, de 4 de janeiro de 2019, a chamada Lei dos Fundos Patrimoniais, promulgada já no atual governo, que regula a criação de tais fundos com o objetivo de “arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público”. Fundos patrimoniais são formados por doações privadas e o montante obtido é investido no mercado financeiro, de modo a gerar uma receita contínua para aplicação em ações das instituições. No caso das IFES, como previsto no Future-se, contudo, diante da crise econômica e da inexistência de cultura de doações a ICTs por parte de empresas no Brasil (como mostra a experiência da UnB que já regulamentou procedimentos para constituição de seu fundo patrimonial), pode-se imaginar que tais fundos serão formados apenas por patrimônio público, ou terão grande dificuldade para efetivamente captar recursos e integralizar seu capital.
Neste sentido, importa alertar que a lógica, narrativas, práticas e métodos de cálculo da financeirização (PEREIRA, 2017) são elementos subliminares da proposta de transformação radical da gestão das universidades e institutos federais contidos no Future-se. Sabemos que a universidade brasileira tem muito a evoluir em termos de gestão universitária e procedimentos burocráticos, em que pese os consideráveis avanços alcançados ao longo dos últimos 10-20 anos, assim como os desafios que a digitalização da economia e mesmo da vida social estão a impor. Contudo, tais medidas me parecem mais uma ruptura com a própria noção de universidade pública, gratuita e de qualidade que almejamos. O ensino, a pesquisa e a extensão ficarão profundamente subordinados ao empresarialismo, às disputas ultraliberalizantes e, especialmente, à lógica da busca por valorização acelerada que a financeirização suscita e estimula, enquanto a agenda de pesquisa será fortemente (senão completamente) pautada por interesses do “mercado”, visto que este ditará os critérios para a aplicação dos eventuais fundos e práticas financeiras previstos no programa. Consequência óbvia é a asfixia do pensamento crítico, especialmente aquele formulado nos campos disciplinares das ciências humanas, que se não se “adequarem” ao modelo, fenecerão por falta de recursos. Temo pela sobrevivência da universidade, tal como a entendemos, já que o modelo proposto no Future-se, não apenas retira-lhe sua autonomia, como empurra docentes e gestores numa corrida por recursos que tende a deixar de lado as demais dimensões da universidade plural, democrática, comprometida com seu país e seu contexto, articulada à produção de conhecimento em escala internacional e de excelência, tal como pensada por grandes brasileiros como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e tantos outros.

Notas
  1. Conforme estimativas de Aalbers (2017), o volume de valores orientados para esta lógica cresceu significativamente na última década e não parece ter-se intimidado pela crise do subprime de 2008: “Housing-based wealth, i.e. housing valued at current market prices minus debt, has risen to historically unprecedented heights, implying that real estate has become more important as a store of value in the age of financialization. In the Eurozone, for example, housing-based wealth grew from 3.7 trillion euros in 1980 to 13.2 trillion euros in 1999 and reached 24.2 trillion euros in 2006 (ECB, 2006; BIS, 2009)”.
  2. Comoditização é a transformação de bens e serviços (ou coisas que podem não ser normalmente percebidos como bens e serviços) em uma commodity ou mercadoria comercializada em mercados internacionais.

Referências
Aalbers, M. B. The financialization of home and the mortgage market crisis. Competition & Change 12.2, 148–66, 2008.
Aalbers, M. B. The variegated financialization of housing. International Journal of Urban and Regional Research, 41 (4): 542-554, 2017.
Canettiere, T. A produção capitalista do espaço e a gestão empresarial da política urbana: o caso da PBH Ativos S/A. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 19 (3): 513-529, 2017.
Pereira, A. L. Financialization of Housing in Brazil: New Frontiers. International Journal of Urban and Regional Research, 41 (4): 604-622, 2017.


A Lavanderia e o Chile – quando os mansos herdarão a Terra? por Dora Incontri





Numa referência ao Sermão da Montanha, essa pergunta é feita no filme A Lavanderia (disponível na Netflix), dirigido por Steven Soderbergh, com Meryl Streep, Antonio Banderas e Gary Oldman.

A Lavandaria e o Chile – quando os mansos herdarão a Terra?

por Dora Incontri

Numa referência ao Sermão da Montanha, essa pergunta é feita no filme A Lavanderia (disponível na Netflix), dirigido por Steven Soderbergh, com Meryl Streep, Antonio Banderas e Gary Oldman.
Não é um grande filme, mas narra de maneira didática o caso dos Panama Papers e como funcionam as falcatruas internacionais de empresas fantasmas, para evasão de impostos e lavagem de dinheiro. O ótimo elenco marca o filme. De qualquer modo, me provocou reflexões, justamente por uma citação à teologia da libertação e algumas falas que invocam as palavras de Jesus de que “os mansos herdarão a Terra”. Há afinal alguma perspectiva disso acontecer?
Até agora, quem tem dominado o planeta são os brutos, os gananciosos, os violentos, “os que açambarcam os bens da Terra”, no dizer do Livro dos Espíritos de Kardec – passagem, entre outras, que os espíritas conservadores passam sem ver. Os mansos, os pobres, os pacíficos, a esses que Jesus prometeu bem-aventuranças aqui no mundo mesmo e além, continuam explorados, escravizados e oprimidos.
Por que motivo, caminhamos dois passos para frente na construção de um mundo que os famintos de justiça sejam saciados, para logo em seguida, retrocedermos um, dois ou três passos para trás? E isso nos dá uma impressão de que as coisas não avançam e as estatísticas confirmam a impressão, porque os números da fome, da falta de saneamento básico, de crianças sem escola, e a manutenção das guerras e da devastação da natureza parecem confirmar que não há de fato uma melhora nas condições de justiça e bem-estar no mundo.
Por isso mesmo, é difícil convencer alguém hoje ou mesmo convencer a nós mesmos de que há um processo de evolução e progresso na humanidade – sendo esse um dos maiores postulados do espiritismo. Pessoalmente, penso que sim, há avanços e que, mesmo com os retrocessos, algo dos avanços sempre permanece, nem que seja como nova consciência. Uma espécie de evolução com idas e vindas, mas ainda sempre algo de melhor vamos alcançando aos poucos.
Ocorre que desde o anúncio da vinda do Reino de Deus, feito por Jesus, passando pelos milenarismos medievais, pela Utopia de Thomas Morus, pelos socialismos do século XIX e XX, sempre tem havido uma ideia de chegada a algum ponto melhor, quase perfeito, do que aquele em que estamos inseridos.
Por isso, no meio de toda a sujeira e desumanidade narradas em forma de comédia leve pelo filme A Lavanderia, Meryl Streep tem um bate-papo com Deus e pergunta quando é que afinal os mansos herdarão a Terra…
De fato, não sabemos. Mas mantemos a luta e a esperança… seja por uma promessa para aqueles que aceitam Jesus como Deus (os cristãos tradicionais) ou para aqueles que o veem como um ser iluminado (como os espíritas); seja porque partilhamos de uma ideia de construção socialista ou anarquista (ou ambas) e investimos nessa luta para lá chegar.
E quando movimentos fortes como o do Chile, em que um povo injustiçado e oprimido se levanta com coragem e força, renova-se a esperança. E sobretudo, para nós, de que o Brasil também acorde. Que todos os povos acordem e que façam o Reino já. Sem violência, mas com firmeza; sem revanche, mas com justiça, porque são os mansos que herdarão a Terra e os que têm sede de justiça, que serão saciados.



Do Instituto Humanistas Unisinos: Chile. O orgulho de resistir aos males do neoliberalismo e à herança maldita de Pinochet e dos militares tomou as ruas


  "A cordilheira é tingida ao pôr do sol como se estivesse corando quando os relógios começam a se aproximar do toque de recolher. Parece inclinada de vergonha sobre La Alameda, parece que buscará o abraço dos milhares de manifestantes que ocupam a avenida principal de Santiago de Chile, radiantes de orgulho por resistir na rua frente aos carros patrulheiros, as forças policiais e militares que exibem as armas largas, as máscaras e capacetes que escondem suas caras e os gases lacrimogêneos para amedrontar aqueles que não se amedrontam porque se organizam. "



Do IHU Unisinos:
Com as ruas tomadas e as universidades fechadas, as centrais trabalhadoras declararam greve geral de 48 horas para somar força ao protesto, que desafia a repressão.
A reportagem é de Marta Dillon, publicada por Página/12, 23-10-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
cordilheira é tingida ao pôr do sol como se estivesse corando quando os relógios começam a se aproximar do toque de recolher. Parece inclinada de vergonha sobre La Alameda, parece que buscará o abraço dos milhares de manifestantes que ocupam a avenida principal de Santiago de Chile, radiantes de orgulho por resistir na rua frente aos carros patrulheiros, as forças policiais e militares que exibem as armas largas, as máscaras e capacetes que escondem suas caras e os gases lacrimogêneos para amedrontar aqueles que não se amedrontam porque se organizam. Todo o dia houve assembleias nas universidades, na porta dos ministérios, na rua, nos centros de estudantes, nos sindicatos. Se discute ao mesmo tempo que se toma a rua, se organizam cuidados coletivos ao mesmo tempo que se desafia o medo. Se declara uma greve geral de 48 horas ao mesmo tempo que a greve se desenvolve de muitas maneiras, ao mesmo tempo, sempre na rua.
As escolas públicas fechadas, as privadas livradas do seu arbítrio. As universidades fechadas por decisão de suas autoridades, para evitar que se convertam em ratoeiras agora que o “Estado de Emergência” permite que as Forças Armadas entrem nos seus recintos para reprimir ou prender, docentes, funcionários e estudantes. As ruas tomadas desde o meio-dia, já há cinco dias.
Em Concepción, uma das cidades mais atingidas pela repressão, ontem à tarde agitou uma festa eletrônica contra o toque de recolher. Nos bairros populares do sul de Santiago se dançou a cueca. Em todos os lados soaram panelas e as bicicletas levantaram o transporte público.
Ainda que alguns grêmios já realizaram jornadas de paro – os portuários de Valparaíso, por exemplo – a Central Única de Trabalhadores e Trabalhadoras (CUT) junto à articulação Unidad Social na qual participam outras organizações sociais declarou uma greve de 48 horas que começa hoje e que prepara uma mobilização massiva desde a Praça Itália até a estação Los Héroes a partir das 10:30 da manhã. A revolta agita o Chile que não pode terminar de contar seus mortos e mortas. O Ministério Público Nacional entregou a identificação de 7 dos 15 que reconhece, 8 corpos mais foram encontrados incinerados em uma fábrica e um supermercado. Na região metropolitana, ademais, há três denúncias formais de abuso sexual por parte dos policiais a pessoas detidas. Forçar as pessoas a se desnudarem parece ser uma prática recorrente das forças repressivas.
Não somente Santiago está ensanguentada, mas, no entanto, a rua não fica abandonada. O medo mudou de lado, dizem as paredes e isso é uma vibração que sacode mais que os terremotos e uma demanda mais clara que a água do degelo que baixa dos altos cumes: baixem as armas.
Camilo Piñeros, estudante de medicina de sexto ano, é parte da auto-organização de profissionais e estudantes da saúde para atender pessoas feridas, que sabem que vão chegar porque já contaram centenas desde sexta passada. “Nos dividimos em macro regiões: oriente, oeste, norte e sul, localizamos lugares de recolhimento de materiais de primeiros socorros e estamos 'conectades' – com “e”, sim, porque aqui é regra entre estudantes – por whatsapp”. Agora que se aproxima da hora em que as armas tem permissão governamental para disparar esperam com calma porque sabem como responder em caso de emergência.
Na Praça Itália, centro nevrálgico de Santiago, há jovens e velhas, trabalhadoras formais e trabalhadores informais, dirigentes sindicais, donas de casa, professores de todos os níveis, estudantes, artistas, pais, filhos. Uma incontável quantidade de pañuelos verdes feministas e outro tanto dos amarelos, os que dizem “No + AFP” – denunciando o roubo que é a previdência privada. Há, sobretudo, uma rebeldia que não se acalma nem com as balas, nem as mortes que choram coletivamente, nem com os gases que nunca deixam de coçar na garganta. A decisão é certeira e foi tomada nas assembleias e na própria rua sem nenhuma abordagem orgânica: isso não vai parar até que os milicos e “os pacos” (carabineiros) não saiam da rua. Está pintado em cada parede desta imensa cidade e anda de boca em boca. Com as armas na rua não há nada que falar com as instituições e muito que mobilizar para sacudi-las.
“Vim com minha filha de 9 anos porque ela estava assustada. Assustada com os milicos, assustada com os gases, com as gangues. São cinco dias de mobilização e a trouxe para que não tenha medo. Porque o povo que luta não teme, e aí está, contente com seu apito”, disse Camila que é enfermeira e ontem participou da assembleia frente ao ministério da Saúde que seguiu com a mobilização de profissionais e estudantes do setor para Plaza Italia. Ao seu lado, quatro estudantes do último ano de obstetrícia com os aventais brancos que usam em suas práticas, nenhuma tem mais de 24; todas estão endividadas, calculam, até 2040. Porém agora querem falar de outra coisa, querem falar do colapso do sistema de saúde. “80% da população usa a saúde pública, porém o investimento não é suficiente para cobrir nem 30%. Os hospitais não podem colapsar agora com os ferides porque os hospitais estão colapsados já faz tempo. Temos que hospitalizar em salões, não há especialistas; onde deveria haver 20 profissionais, há 10... isso é violência estrutural, não se trata dos famosos 30 pesos, se trata de 45 anos de políticas econômicas neoliberais que levam nosso dinheiro ao setor privado para depois fugi-lo”. Essa é a descrição de IaraCamilaPaula e Evelyn do funcionamento das Administradoras de Fundos de Pensão, um lento roubo de toda a população “para depois cobrar uma aposentadoria ínfima”, insiste Iara.

Evasão popular

Faltam 17 minutos para o toque de recolher e desde os bairros altos, esses que aqui se chamam “pijos” porque é onde as casas são amplas e os automóveis também – como as dívidas –, centenas de bicicletas descem pela avenida Providencia. “Evade”, dizem os cartazes que levam colados nos guidões. É uma palavra-chave que também se pinta sobre as paredes e nos vidros das paradas dos coletivos – “las micros” – sobre La Alameda. Foi o que começaram a fazer há mais de uma semana os estudantes das escolas secundárias, evadir (pular a catraca) contra o aumento do metrô. Uma ação direta, que explodiu esse “Chile despertou!”, que não para de tomar cor.
Evadir é o primeiro ato de liberdade imaginado para quem entra nesse “curral de vacas” para a expropriação de seu tempo e seus saberes por mais da metade da vida – o que significa estudar neste país. Você precisa ter muito dinheiro para fazer em uma carreira técnica, terciária ou profissional, sem contratar um crédito com garantia do estado que pague os estudos e que será devolvido quando os primeiros salários começarem a ser recebidos. “Sou professora de Educação Física, recebi em 2014, tive que pedir 6 milhões de pesos para estudar, acabarei pagando 20 milhões, no passo que ando, será em 2036”. Porque, embora Álvaro Barrientos queira adiantar parcelas de seu CAE, ele mal consegue sustentar a vida cotidiana sem incorrer em outras dívidas. Ele está sentado em uma praça na comuna de Providencia, embora a militarização da cidade que já dura cinco noites esteja se aproximando, há um microfone aberto e uma banda tocando, centenas de pessoas na grama, crianças brincando com as panelas dos protestos e um sentimento que não se assemelha à fúria, mas outra palavra que também vem do cartaz do graffiti: dignidade.
Vonni Basulado, jovem estudante de pedagogia em matemática, sentada na mesma praça que se ocupou porque “es vecines” também se organizaram por whatsapp depois de se encontrar na rua para recuperá-la, destaca. “É contra a precariedade da vida e a favor da dignidade. Isso não se termina. Que roubem os milicos e depois igual vai estar difícil, porque o povo cada vez está mais informado, sem que há problemas estruturais: a educação, a saúde, as AFP e já não queremos mais remendos”.

Assembleias

Javiera Manzi é porta-voz da Coordinadora Feminista 8M, parte da organização da greve transnacional que modificou os 8 de marços no país desde 2017. Ontem, foi protagonista de duas assembleias, a primeira, de coordenadora. A segunda, na Federação de Estudantes do Chile, convocou mais de 60 organizações sociais, sindicatos, mapuches, feministas e de territórios. Ali, como em cada assembleia das quais vem sendo organizadas por setores ou por territórios, se puseram em comum as avaliações do atuado e da imaginação do que está por vir. “A violência se expressa de maneira diferenciada sobre nossos corpos de mulheres e dissidências, nossa luta é anticapitalista e antipatriarcal e queremos que nossas demandas estejam em primeira linha. Nós fizemos a primeira greve feminista neste ano e foi a mobilização mais massiva desde a ditadura. Nos juntarmos com outras organizações é uma necessidade agora porque não é o momento de se fechar, mas sim de se abrir. As assembleias são instituidoras de uma autoridade que fundamos juntes e por esse caminho é que queremos seguir transitando”, disse agitada entre o final de uma atividade, com o som de das panelas de fundo e outra assembleia em seu bairro que também a espera.
O que segue depois dessas mobilizações, desta insurreição que não parece poder ser acalmada com medida ou com “remendos”, como dizem os estudantes sobre o resultado das mobilizações de 2011 pela reforma educativa? “Necessitamos uma Assembleia Constituinte porque a Constituição atual é uma armadilha neoliberal, uma trama jurídica que obstaculiza as reformas que necessitamos no Chile”, disse Benjamín Núñez, estudante de Direito, apenas terminada a assembleia tripartite da Universidade do Chile, onde participaram funcionários/as, estudantes, não docentes, trabalhadores e trabalhadores a honorários – um equivalente a microempreendedor individual ou terceirizados – que na UdeCH são mais de 10 mil. “Porém não pode ser uma assembleia com representantes de partidos políticos, tem que ser uma grande discussão política aberta, um gabinete aberto para que todos e todas possamos desenhar o território que queremos”.
O movimento na rua é autoconvocado, porém não está acéfalo, faz soar as panelas, porém não lhe faltam palavras; é urgente, mas tem o tempo que precisa para parar a vida cotidiana e colocar ali o berço da desobediência. Os prazos que a rua pôs estão expressados nas paredes e com essa poesia própria da revolta diz: “Até que valha a pena viver”.

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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Durante Sínodo da Amazônia, indígenas denunciam invasões de terras e tráfico de pessoas



"O papa está nos dando uma chance de sermos protagonistas aqui fora, de falarmos sobre isso e quebrar o preconceito e o racismo", diz indígena brasileiro



Menina Kinikinau. Foto de 2016 tirada por Ana Mendes/Cimi
Jornal GGN Representantes indígenas dos nove países abrangidos pelo bioma amazônico estão tendo a oportunidade de denunciar não apenas crimes ambientais, mas também contra a humanidade durante os encontros em torno do Sínodo da Amazônia, que acontecem desde o dia 6 e terminam no próximo domingo, 27 de outubro, no Vaticano.
Segundo informações da cobertura do DW Brasil, grupos denunciam casos de tráfico de pessoas, invasões e conflitos em terras indígenas. “O papa está nos dando uma chance de sermos protagonistas aqui fora, de falarmos sobre isso e quebrar o preconceito e o racismo”, contou ao jornal Francisco Chagas, da etnia apurinã.
“Lutamos pela demarcação há 19 anos. As invasões não param: são madeireiros e caçadores, principalmente”, contou.
“A gente sabe que a Amazônia é uma terra em disputa e que algumas críticas querem enfraquecer (o Sínodo)”, completou Zenildo Luiz Pereira da Silva, padre e reitor de um seminário em Manaus, após uma coletiva de imprensa no Vaticano nesta quarta-feira (23).
A líder indígena brasileira e ex-candidata a vice-presidente pelo PSOL, nas eleições do ano passado, Sônia Guajajara, disse à reportagem que as denúncias feitas em âmbito internacional estão ajudando a despertar a preocupação de alguns setores de dentro e de fora do Brasil.
“Em especial as alas do agronegócio que estão provocando conflitos, a indústria madeireira, que está promovendo o aumento do desmatamento que favorece a vulnerabilidades às queimadas e incêndios florestais, a mineração e garimpo ilegal e as grandes extensões de pastagens que vêm contribuindo significativamente para o aumento das mudanças climáticas”, explicou Guajajara, que também coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Outra liderança indígena, Patricia Gualinda, do Equador, destacou que organizações da própria Igreja Católica disseram que estudam rever investimentos na Amazônia, por conta das denúncias.
“Cerca de 130 [de 700] delas se comprometeram a não permitir que dinheiro vá para fundos que apoiem projetos de mineração, petróleo, hidrelétrica ou madeira na região amazônica. Deixamos bem claro para o papa que esses tipos de negócios são os que mais ameaçam os indígenas”, destacou Gualinga que participa diretamente do Sínodo como auditora.
Outra auditoria do Sínodo, irmã Roselei Bertoldo, disse que o tema do tráfico de pessoas também está sendo abordado no encontro. “Os dados do Ministério da Justiça são muito subnotificados. E, no Brasil, quando as mulheres denunciam, muitas vezes a polícia não investiga”, disse a brasileira.
Ela contou que a Rede Um Grito pela Vida, ligada à Igreja Católica, atendeu 57 mulheres vítimas de tráfico de pessoas, entre 2012 e 2019, somente em Manaus.
“Das 20 mulheres desse grupo que aceitaram fazer denúncia junto à Polícia Federal, sete casos foram devolvidos ao Ministério Público sugerindo arquivamento. A gente sabe que, muitas vezes, a própria polícia não faz o processo de investigação dos casos”, pontuou.
Geralmente, a maior parte das vítimas são mulheres trazidas do interior do estado ou de comunidades indígenas. Algumas são meninas para trabalho escravo infantil ou exploração sexual.
“Há ainda muitos casos de casamento servil, de meninas pobres que são pedidas em casamento por estrangeiros e depois desaparecem”, contou.

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