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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Do José Maria Pires, o Bispo com os pés no chão que lutou contra a ditadura e à favor da justiça social até seus últimos dias, falecido no ultimo domingo, em artigo de Leonardo Boff e outros


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Nota do autor deste blog:

  Convivi com Dom José Maria Pires, quando, então com meus 15 anos, era organista da Catedral de Nossa Senhora das Neves, em João Pessoa, Paraíba, em meados dos anos 80. Seus sermões, muito bem estruturados, eram claros, conscientizadores e estimulantes. A ele muitos devem o despertar para a ação social cristã e ele, junto com Dom Hélder Câmara e outros, foi uma das vozes mais lúcidas da chamada Teologia da Libertação. Agora, aos 98 anos de Idade, Dom Pelé (como era carinhosamente chamado na Paraíba), partiu para a grande pátria espiritual onde, certamente, encontrará um lugar certo entre as almas bondosas e que tanta trabalharam pela justiça social em nosso ainda tão injusto e surreal Brasil.... Carlos Antonio Fragoso Guimarães



 Nota de Leonardo Boff:

DOM JOSÉ MARIA PIRES foi um dos grande bispos proféticos da Igreja brasileira. Era negro e sempre defendeu a causa dos afrodescendentes. Esteve nas origens das Comunidades Eclesiais de Base e grande defensor da Teologia da LIbertação. Afetuosamente o povo o chamava de Dom Pelé e mais tarde de Dom Zumbi. Morreu na plenitude dos dias com 98 anos, ainda ajudando na pastoral popular da cidade de Belo Horizonte. Publicamos aqui dois textos que mostram a relevância deste bispo, do prof.Ferando Almeyer Jr da PUC-SP e do Pe. José Oscar Beozzo, nosso melhor historiador da Igreja do Brasil. Éramos amigos de muitos anos e juntos participamos de inúmeros encontros de bispos, de comunidades eclesiais de base e de cursos de atualização teológico-pastoral. Vai-se mais um dos bispos proféticos que tanto nos faltam nos dias atuais. Ele continua uam referência do bispo pastor,profeta, grande pregador e amigo de todos especialmente dos mais pobres. Leonardo Boff

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Dom José Maria Pires, faleceu no dia 27 de agosto de 2017 em Belo Horizonte aos 98 anos.

Foi arcebispo emérito da Paraíba-PB, nascido em 15/03/1919, na pequenina cidade de Córregos em Minas Gerais, nordeste do estado, participou das quatro sessões do Vaticano II. À época, sendo o único bispo negro brasileiro, e uma das vozes mais importantes do episcopado brasileiro irá assumir a nova imagem de Igreja proposta pelo Concílio. Despertará com sua pregação a vontade de tantos irmãos na ajuda eficaz aos que sofrem injustiças. Atenderá ao apelo de Deus na história e não permanecerá impassível diante do grito do sofredor.

Ele perceberá que a Igreja estava mudando e alegremente avançará com coragem! É essa coisa simples feita por gente simples que é capaz de mudar o mundo, simplesmente.

Este filho de gente pobre teve por pais Eleutério Augusto Pires e Pedrelina Maria de Jesus, e aprenderá desde cedo que deve permanecer com os pés no chão. Em um depoimento emocionante nos funerais do presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira, em 29-08-1976, dirá:

Eu andei pelas mesmas ruas pelas quais Juscelino andou. Ele andava de pés descalços e eu também. Era comum as crianças pobres andarem descalças na rua.

Ao pisar o chão de sua terra natal aprenderá as lições permanentes de como ser padre, bispo e pastor. Jamais esquecerá de que é alguém de pés descalços. E é nesse contato com o chão que se torna um pastor fiel.

Foi ordenado padre em Diamantina-MG, em 20/12/1941 (já completou 70 anos de sacerdócio!), atuando como pároco, diretor de colégio, e missionário diocesano. É sagrado bispo em Diamantina, Minas Gerais, em 22/09/1957 (em 2017, comemorou os 60 anos de episcopado), iniciando seu ministério na diocese de Araçuai-MG, como seu terceiro bispo, de 1957 a 1965. Seu lema episcopal será Scientiam Salutis (a ciência da salvação). Nomeado pelo Papa Paulo VI, será o quarto arcebispo metropolitano da Paraíba de 02.12.1965 até 29.11.1995, quando renuncia por idade. Desde então, como bispo emérito peregrino, vive como pregador ambulante levando o Evangelho com vigor que causa uma santa inveja.

Desde muito cedo aprendeu a arte do bem falar: silêncio primeiro, palavra adequada depois. Em seguida, assume com primor e delicadeza, a certeza de ser um bispo pastor: amigo, evangélico, simples e, sobretudo, servidor dos empobrecidos.

Sua ação em favor dos simples é um programa de vida. Vejamos seu discurso de posse como arcebispo metropolitano da Paraíba, secundado por Dom Helder Pessoa Câmara, em plena ditadura militar brasileira, com sua ideologia da segurança nacional, que nega a liberdade e a dignidade da pessoa humana.

Dom Helder assim se expressa para falar de Dom José: “Dom José Maria vai às causas, vai às raízes… E fala claro, sem perder a serenidade, mas chamando as coisas pelos nomes. Quem quiser livrar-se de um Cristianismo desencarnado, quem quiser livrar-se de ensinamentos inodoros, incolores, pregados no vácuo, leia suas páginas (prefácio do livro Do Centro para a margem, Editora Acauã, Paraíba, 1978, p. 7)”.”

São suas estas palavras coerentes, ao tomar posse como arcebispo: “Não quero trazer-vos uma mentalidade de Minas Gerais, costume ou uma civilização do estado em que nasci, naquilo em que esta civilização, esta mentalidade, estes costumes forem diferentes da civilização, da mentalidade e dos costumes da Paraíba. Assim como Cristo, fazendo-se homem, assumiu a natureza humana e, por assim dizer, ocultou, guardou o que ele era, como Deus, e apresentou-se a nós sem deixar de ser Deus, mas foi aprendendo conosco a ser homem, a viver como a humanidade, também o novo prelado vem aqui não para ensinar, mas antes de tudo para aprender a ser paraibano. Eu iniciarei o meu ministério aprendendo convosco. Só me integrando é que poderei cumprir minha missão de servir (É santa a terra em que piso. (João Pessoa, PB, 26.03.1966, in Sampaio Geraldo Lopes Ribeiro, Dom José Maria Pires – Uma voz fiel à mudança social, Ed. Paulus, 2005, p. 17).

O diálogo, tal como foi preconizado na bela carta programática do Papa Paulo VI, Ecclesiam Suam, e ainda melhor expresso na Constituição Lumen Gentium se tornou para dom José Maria o critério da vida pastoral. Tornar-se-á exímio defensor do povo negro, sendo em sua vida alcunhado por dois apelidos carinhosos e densamente simbólicos: no começo de sua vida episcopal será chamado como dom Pelé (por Dom José Vicente Távora, bispo dos operários), ligando-o ao futebolista brasileiro de fama internacional. Depois de alguns anos, será renomeado” por dom Pedro Casaldáliga (prelado emérito de São Felix do Araguaia, MT) como Dom Zumbi, para conectá-lo à causa do povo negro no Brasil, fazendo memória do líder dos quilombos brasileiros, Zumbi dos Palmares.

Os apelidos não conseguiram retirar-lhe sua identidade mais profunda, que é a de alguém que sempre assumiu sua origem, sua etnia, e seu amor aos pobres como uma chave interpretativa do mundo e como forma efetiva da encarnação cristã no nordeste brasileiro, mergulhado em tantas injustiças e contradições que exigiam fidelidade radical ao Cristo. Dom José não é um homem de meias palavras nem de meias ações.

Quem o ouve sempre percebe que ele está inteiro no que diz, naquilo que fala e no que sonha e compartilha com seus interlocutores. Ao ouvi-lo, sente-se que se está diante de um verdadeiro pastor: não há arrogância em suas palavras. Sentimo-nos encorajados e desafiados, jamais amedrontados. Dom José é o verdadeiro irmão e pastor, que não abdica do diálogo, pois crê e ama o interlocutor.

Poderemos seguir os passos deste bispo negro, em todos os recantos da terra brasileira sempre animando as pequenas comunidades de base, as causas dos empobrecidos e as lutas por justiça social, sem extremismos. Estará entre os operários da primeira hora, quando surgiu a Comissão Pastoral da Terra-CPT, e ainda entre os apoiadores e animadores do Conselho Indigenista Missionário, CIMI e ainda de cada uma das dezenas de pastorais sociais, gestadas pelo povo e acolhidas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (cNBB), quando das presidências proféticas de Dom Aloísio Lorscheider, Dom Ivo Lorscheiter e dom Luciano Mendes de Almeida, naquilo que será chamado o momento de ouro da Igreja brasileira, vivido entre as décadas de 1970 e 1980. Verá nascer com as dores de parto, a poética Missa dos Quilombos, depois proibida e estará entre os animadores da Missa da Terra Sem Males, também proscrita e que pretendiam abrir novos caminhos litúrgicos na inculturação e diálogo inter-religioso.

Enfrentará a ganância de fazendeiros e coronéis nordestinos, com a simplicidade das pombas. Não pedirá favores aos poderes políticos ou econômicos, confiando sempre na Palavra de Deus e na compaixão dos pobres. O caminho pode ser mais lento e singelo, mas as raízes serão sempre mais profundas e seguras. Ele clamará contra os latifundiários como Nabot contra o rei Acab. Dirá em 05 de março de 1976 na carta pastoral para todos os diocesanos: “quando se cansar a paciência do pobre que está sendo esmagado pelos poderosos, a de Deus também se cansará e Deus virá fazer a justiça que os homens se recusaram a fazer”” (Carta Pastoral de março de 1976).

Dom José vê, compreende e fala do sofrimento dos agricultores. Conhece os problemas do campo e assume um compromisso como igreja para ser a Igreja com os fracos e oprimidos, ou seja, uma Igreja que toma posição ao lado do pobre por fidelidade ao Evangelho e por amor ao povo.

Denuncia o sistema capitalista por seus frutos e por sua segregação das grandes massas. Dirá em 1967: “Dar esmolas, todos acham que é razoável. Mas aceitar que é um roubo guardar o supérfluo quando a outros falta o necessário, isto lhes cheira a marxismo. Realmente, dentro da mentalidade dominante, não é fácil aceitar a receita da Populorum Progressio que é a mesma do Evangelho”.

Sua mensagem é de vida plena e, sobretudo de conversão. Dirá que é preciso ir do centro para a margem. Este será seu contínuo processo vital. Movimentar-se em direção dos pequenos. Ir para a margem da sociedade, da Igreja, do mundo. Fará este gesto ético e religioso motivado por uma profunda vivência de Cristo, além de ser um aprendiz permanente na prática da não-violência ativa, como ação de firmeza permanente. Como discípulo de Cristo saberá mostrar ainda hoje as riquezas do Concílio Vaticano II, como um projeto de vida.

Uma Igreja que se distancie dos “centros” e que se aproxime das “margens” do mundo. Uma Igreja que não espere nem confie nos poderosos e nos senhores do mundo. Uma Igreja que deve continuar a cumprir a missão profética de proclamar os direitos dos oprimidos mesmo sabendo que sobre ela pesa a cólera dos governantes, pois só esta fé autêntica é que poderá salvar a pobres e ricos. Nesta Igreja não há lugar para acomodados e passivos. Dirá de forma incisiva: “O catolicismo brasileiro não criou no povo uma consciência de sua cultura, de seus valores, de sua idiossincrasia. A consciência dominante do povo é hierárquica, como aceitação passiva e talvez o maior obstáculo ao verdadeiro desenvolvimento, pois gera acomodação e conformismo”.

Para dom José Maria Pires, o oitavo sacramento é a alegria. Sempre se diz que quando alguém alegre entra em uma casa é como se em um quarto escuro, a janela se abrisse para a luz entrar. Esse será a tarefa de dom José: com os pés descalços, abrir as janelas da Santa Igreja. Não terá sido esse o pedido de um outro José, o bergamasco Roncalli, quando convocou o Concílio? Ainda hoje precisamos de bispos que abram as janelas de nossas Igrejas para que a alegria do Cristo nos rejuvenesça. Gente como dom José, de pés descalços, camisa arregaçada na luta pelos pobres e uma alegria convicta no coração, verdadeiros filhos e herdeiros do Concílio.

Falece em 27 de agosto de 2017 com 98,4 anos de muita profecia, mergulho na vida e pé na estrada ao lado de Jesus peregrino.

Vai em paz, quilombola de Deus.

Prof. Dr. Fernando Altemeyer Júnior, 60 anos, mestre em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, Bélgica. Licenciado em Filosofia. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professor PUC-SP.
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O Pe. José Oscar Beozzo, como exímio historiador da Igreja acrescentou ao texto de Altmeyer ainda os seguintes tópicos:

“Dom José Maria Pires era voz escutada com respeito por todo o episcopado, temida pelos poderosos e acolhida com alegria e conforto pelos pequenos, de cujas causas nunca se apartou. Por mais de 50, anos foi assíduo frequentador, a cada ano, do Encontro Latino-americano de Estudos – Curso dos Bispos, instância de encontro, reflexão, oração e iniciativas corajosas que continuou congregando os bispos latino-americanos do grupo Igreja dos Pobres do Concílio Vaticano II e aqueles que decidiram, em seguida, trilhar o mesmo caminho em seu ministério episcopal.

Dom José Maria Pires era o patriarca do grupo que frequentou até 2015, tendo faltado ao encontro de 2016, por razões de saúde.

Quando o ITRA, o Instituto Teológico do Recife, foi fechado pelo sucessor de Dom Helder, Dom José Maria acolheu em João Pessoa professores e alunos do Instituto, para dar continuidade a uma formação teológica comprometida com a causa dos pobres e de sua libertação e enraizada na cultura nordestina.

Por duas vezes, fez a pé, durante um mês, o caminho de Santiago de Compostela partindo da fronteira da França com a Espanha. Na segunda vez, já havia completado 90 anos esse rijo camponês, que depois de bispo emérito continuou atendendo em Belo Horizonte uma paróquia da periferia, na simplicidade e humildade e num incansável espírito de serviço.

Por delegação da CNBB acompanhou com carinho e compreensão o movimento dos padres casados com suas famílias, tomando partido pela retomada do ministério por parte daqueles que o desejassem. Batalhou para que a Igreja abrisse suas portas para o ministério ordenado de homens casados.

Foi também o grande animador da Pastoral afro-brasileira e do movimento dos padres e bispos negros que ganhou espaço e amplitude na vida da Igreja do Brasil e também da América Latina e do Caribe, através do CELAM.

Foi para mim um privilégio o ter desfrutado de sua fiel amizade. A cada Natal e Páscoa, Dom José não deixava de enviar uma palavra carinhosa e sempre antenada nas questões mais urgentes do país e da Igreja.

Foi um dos sócios fundadores do CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular) e membro de sua Assembleia que, por 33 anos (1982-2015) acompanhou, incentivando os trabalhos em curso e propondo sempre sábias orientações.

A Igreja e a sociedade brasileira perdem uma grande figura, cuja maior glória é ter sido um fiel seguidor do evangelho e de Jesus Cristo a serviço dos mais pobres, de suas causas e libertação.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Noam Chomsky, em entrevista para a Revista Galileu: "Os brasileiros não se revoltam (com o golpe de Temer e da Casa Grande), mas não significa que concordam"


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"(...) esse desprezo pela democracia é o sonho dos neoliberais. Aqui no Brasil, é bastante óbvio. É só dar uma olhada na popularidade do seu presidente [Michel Temer], que está em 7% [5%, de acordo com pesquisa mais recente do Ibope]. Mesmo assim, suas medidas continuam seguindo em frente." - Noam Chosmky




POR NATHAN FERNANDES, do Galileu (também apresentada no Geledes.org.br)
O linguista, filósofo e ativista político norte-americano Noam Chomsky interrompeu sua caminhada no Parque da Água Branca, em São Paulo, para ouvir os violeiros que tocavam “O Menino da Porteira”. Não deve ter entendido nada, mas tudo bem para o homem que revolucionou a linguística ao lançar o livro Estruturas Sintáticas, em 1957.
Para ele, a fala é uma habilidade inerente aos seres humanos — uma pessoa que foi criada entre macacos pode aprender a falar se recuperar o convívio social; ensinar um macaco, entretanto, seria impossível. Enquanto os estudos estruturalistas afirmavam que a língua era um fator externo, Chomsky dizia o contrário. Ao subverter essa ideia, criou um novo campo a ser explorado.
Mas não só. Ele também é conhecido por seu tom crítico e suas posições políticas bem determinadas — como é possível ler na entrevista a seguir. Em 2014, o intelectual casou-se com a brasileira Valéria Chomsky, a mulher responsável por tornar Machado de Assis um dos autores preferidos de Woody Allen e que ajudou a ajustar a tradução do título de Memórias Póstumas de Brás Cubas em inglês.
Em sua última estadia nas terras da esposa, em julho, o professor emérito do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), de 88 anos, comeu polpa de coco pela primeira vez e recebeu a GALILEU na casa da sogra, onde falou sobre seu legado e o recém-lançado livro Quem Manda no Mundo? (Editora Crítica).
No filme Capitão Fantástico, o personagem de Viggo Mortensen, que lhe rendeu indicação ao oscar de melhor ator neste ano, educa os filhos longe da civilização. Em vez do natal, eles comemoram o Dia de Noam Chomsky. eu Sempre quis saber se o senhor já viu esse filme.
Planejei ver algumas vezes, muita gente me falou dele, mas nunca vi.
O senhor acha que o mundo seria um lugar melhor se as pessoas comemorassem seu aniversário em vez do Natal?
Acho que não. As crianças se divertem muito mais no Natal (risos)…
A que tipo de filme gosta de assistir?
Fico sempre tão ocupado que quase não sobra tempo. Mas gosto de filmes franceses e italianos dos anos 1940 e 1950, e clássicos do Charles Chaplin. Valéria sempre me apresenta alguns também.
Vocês fazem maratonas de série juntos?
Fazemos o quê?
Maratona de série…
Ah, não, mas a gente gosta de assistir aos filmes do Woody Allen. Os nossos preferidos são Poderosa Afrodite e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. Já me encontrei algumas vezes com Allen, mas a Valéria é quem o conhece bem.
Perguntei sobre séries porque, quando o senhor fala de mudança climática, me lembra muito Game of Thrones, quando Jon Snow avisa da ameaça dos White Walkers, que podem destruir Westeros, mas as pessoas se preocupam mais com as disputas de poder.
Quanto a isso, infelizmente, os Estados Unidos estão agindo de forma criminosa. Enquanto todos estão tomando medidas para resolver o problema, mesmo que não sejam suficientes, os EUA se negam a participar e trabalham duro para deixar o problema muito mais sério. É uma situação surpreendente, o país mais poderoso da história tenta destruir o sistema e o mundo procura por alguém que possa salvá-lo: a China.
Seu último livro me deu a impressão de que a democracia é só uma desculpa para que gente poderosa deixe o mundo cada vez mais desigual. O senhor acredita na existência de uma democracia de verdade?
Não é uma questão de sim ou não, a democracia tem muitas dimensões. Veja a Europa Ocidental, por exemplo, que tem uma democracia capitalista. Sabemos que todo modelo desse tipo está fadado ao fracasso, porque ele tem inconsistências. Mas existem maneiras de moderar isso.
Os países europeus, principalmente os do norte, colocam várias medidas em ação. Por outro lado, nos anos recentes, a Europa tem ido por um caminho que visa minar seriamente a democracia: decisões importantes estão sendo tiradas das mãos da população.
A Troika é um desses casos: ela não teve nenhum efeito na verdadeira situação econômica da Grécia. São basicamente políticas que fazem com que os contribuintes europeus paguem aos bancos do norte, alemães e franceses, por terem realizado empréstimos arriscados ao país. Quando a população grega votou um referendo dizendo que não apoiava essa política, em 2015, a reação foi torná-la mais severa, punindo as pessoas por ousarem pensar que a democracia poderia existir — o que é um pouco irônico, já que a Grécia é o berço da democracia. Mas essa ironia passou quase sem ser notada na Europa.
Mas isso não é só na Grécia, né?
Isso acontece no mundo inteiro, esse desprezo pela democracia é o sonho dos neoliberais. Aqui no Brasil, é bastante óbvio. É só dar uma olhada na popularidade do seu presidente [Michel Temer], que está em 7% [5%, de acordo com pesquisa mais recente do Ibope]. Mesmo assim, suas medidas continuam seguindo em frente.
É como se o poder não estivesse com os políticos, mas com os banqueiros ou empresários?
Tecnicamente, o poder está nas mãos dos políticos, mas a questão é quem eles ouvem: os eleitores ou as corporações internacionais e os bancos?
O senhor acha possível existir uma democracia livre da interferência de pessoas que só visam seus interesses particulares?
Acho que a democracia é perfeitamente possível. Tanto que esse desprezo dos políticos por ela mostra que ela não só é possível como ameaça vários interesses. Veja os Estados Unidos, por exemplo. Na Convenção Constitucional [de 1787], o medo da democracia foi um tema que permeou todas as discussões. James Madison, o “Pai da Constituição”, descreveu o problema claramente, usando a Inglaterra como exemplo.
Ele imaginou que, se toda a população da Inglaterra pudesse votar, as pessoas aprovariam leis que minariam o poder e as propriedades dos mais ricos, e isso seria bem injusto. Para resolver a questão, a conclusão foi a de que eles deveriam, em suas palavras, “proteger a minoria rica da maioria”. É interessante que Madison tenha colocado exatamente o mesmo dilema que Aristóteles colocou.
O filósofo afirmou que, se existisse uma desigualdade significativa, a maioria pobre agiria para tirar as propriedades dos ricos e distribuí-las. Trata-se do mesmo problema, mas com uma solução diferente. Enquanto James Madison diz que devemos evitar a democracia, Aristóteles diz que devemos superar a desigualdade. Essa batalha perpassa por toda a nossa história. Sempre há um esforço popular para criar mais democracia. Existem muitas medidas que tentam lidar com as falhas do sistema democrático — algumas são bem-sucedidas, outras não, e essa batalha segue constantemente.
E isso está acontecendo no Brasil agora?
Sim, e de uma forma muito dramática, graças aos esforços do atual governo para minar as realizações de desenvolvimento social das décadas passadas. Precisamos ver como a população reagirá a isso. Se as medidas de Temer forem implantadas, o prejuízo para o Brasil será enorme. As pessoas aceitarão isso ou continuarão a lutar pela democracia da forma como lutaram na época da ditadura? Não sabemos.
O estranho é que os brasileiros parecem concordar com todo esse cenário, já que não estão fazendo nada em relação a isso…
Concordar? Não sei se concordam. Os brasileiros não se revoltam, mas isso não quer dizer que concordam. Escravos não concordavam em ser escravos.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

A armação para o negócio do século com a Eletrobras, por Luís Nassif



A venda da Eletrobras será a joia da coroa de todas as negociatas planejadas por Michel Temer. Governo traz dois dos mais polêmicos vendedores de ativos nacionais para ajudar a preparar a armação

negócio do século venda eletrobras governo temer privatização

Luis Nassif, Jornal GGN - também no Pragmatismo Político
A venda do controle da Eletrobras certamente será a joia da coroa de todas as negociatas planejadas pelo governo Temer.
Está-se no meio de uma reestruturação radical no setor elétrico, com a substituição do modelo hidrelétrico pelas novas formas de energia. Todas elas têm em comum o fato de serem intermitentes. Por isso mesmo, duas áreas fundamentais são as usinas hidrelétricas, operando como backup do setor; e as linhas de transmissão, interligando todos os pontos. Por isso mesmo, a Eletrobras é estrategicamente essencial para o modelo.
Nos anos 90, a visão de negócios de Fernando Henrique Cardoso promoveu uma desregulação do setor, copiado do modelo inglês, país com características totalmente diversas da brasileira. O resultado foi um salto nas tarifas de energia que tirou totalmente a competitividade de setores eletro intensivos da economia. Um dos grandes trunfos do país, para competir globalmente – a energia barata – foi destruído por essa improvisação.
Agora, se monta o mesmo balcão de negócios em cima de um slogan vazio: a ideia de que a privatização da Eletrobras vai baratear as contas de luz, mesmo argumento utilizado na desregulação do mercado dos anos 90.
No período que antecedeu a queda de Dilma Rousseff, houve imensa movimentação de lobistas de todos os setores, de olhos no balcão de negócios previsível.
A movimentação mais rápida foi em direção à Eletrobras. Antes mesmo de assumir o cargo, ainda na fase interina, Temer editou a Medida Provisória nº. 735 viabilizando a venda da empresa. A privatização motivou críticas até da agência Moddy’s.
O plano do governo de privatizar a Eletrobras é um fator de crédito negativo para a estatal, já que traz incertezas sobre o apoio governamental em momentos de necessidade“, disse a agência de classificação de risco Moody\’s nesta terça-feira: “O plano cria também distrações para a administração que podem prejudicar outras iniciativas, incluindo a estratégia de reestruturação da companhia iniciada em novembro passado“, disse a vice-presidente e analista sênior da Moody’s Cristiane Spercel em comentários.
Confira os personagens que foram para lá.
► Wilson Ferreira Júnior
Assumiu a presidência da empresa. Ex-funcionário da CESP, assumiu a CPFL na privatização e ficou lá até o final. Foi um grande executivo, mas seu último ato foi vender a empresa para o grupo chinês Stat Grid.
A empresa já é uma das principais investidoras no setor elétrico. Acaba de comprar um prédio no Rio de Janeiro por R$ 200 milhões para sua sede no Brasil, indicando o apetite para grandes negócios no país. Com exceção da diretora jurídica Laura Pinheiro, toda sua diretoria é composta por chineses.
Desde o início, já se viam as cartas marcadas para vender a empresa para os chineses. Um ano atrás Ferreira procurava desmentir, sustentando que só venderiam participações em outros empreendimentos.
► José Luiz Alqueres
No governo Itamar Franco, foram resolvidos os problemas do endividamento circular do setor elétrico. Havia boas perspectivas para a Eletrobras. Alqueres assumiu uma diretoria do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e colocou papéis da Eletrobras em um fundo negociando com o mercado. Denunciei a manobra. Ele me procurou, explicou as boas perspectivas da Eletrobras e disse que o fundo visava apenas conferir liquidez ao papel para preparar a ida a mercado.
Tempos depois, houve a venda de parcela expressiva das ações para o Bozzano Simonsen, um escândalo. Definiu-se o preço do papel pela média de 40 pregões, em pleno período inflacionário. Com a média, ganhava-se quase um mês de inflação. Depois, se dava mais 30 dias de prazo para o pagamento. Um lote que deveria valer US$ 2,5 bilhões saiu por uma quantia irrisória.
Denunciei a manobra, Itamar obrigou Alqueres e o então Ministro de Minas e Energia, Paulino Cícero, a darem explicações. Nenhuma parava em pé.
Pouco tempo depois, Alqueres deixou o governo e foi trabalhar para o Bozzano Simonsen.
► Elena Landau
Substituiu Alqueres na presidência do Conselho
Figura carimbada, uma das principais operadoras das privatizações de Fernando Henrique Cardoso, atuando junto ao BNDES e aos fundos de pensão, inclusive definindo os títulos que poderiam servir de moeda de privatização. Depois, tornou-se braço direito do controvertidíssimo banqueiro Daniel Dantas.
Elena é advogada e sócia do escritório Sérgio Bermudez.
► José Paes Rangel
Representante dos minoritários, é diretor vice-presidente do Banco Clássico,m dos herdeiros do notabilíssimo J.J.Abadala (os mais velhos se lembrarão dele), com participação em empresas do setor elétrico brasileiro, como a Cemig, a Tractbel e a própria Eletrobras.
► José Guimarães Monforte
Atuou como executivo em vários bancos e empresas, como Banespa, Banco Merrill Lynch, Banco Citibank NA, VBC Energia S/A e Janos Comércio, Administração e Participações LTDA, ocupando posições no Brasil e no exterior
Monforte passou a integrar o Conselho de Administração da PETROBRAS representando o Fundo Aberdeen e outros investidores internacionais.

A montagem do negócio

Para saber a quem beneficiará essa venda – além das pessoas diretamente envolvidas – basta identificar quem levou operadores notórios de mercado para a Eletrobras. É evidente que a infiltração de notórios operadores no Conselho da empresa não apenas visava prepara-la para a privatização, mas atender às demandas dos grupos que os indicaram para os cargos.
Não se trata apenas de uma queima colossal de ativos públicos. Trata-se do comprometimento de um dos ativos fundamentais para o desenvolvimento brasileiro, que é a energia.
O bravo Ministério Público Federal que ajudou a colocar esses grupos de lobies no poder, junto com a organização criminosa de Michel Temer, tem a responsabilidade de minimizar os danos que estão causando ao país.
E o caso Eletrobras é um dos mais significativos.

Em tempos de retorno do fascismo e dos fundamentalismo políticos reacionários, há guerra espontânea de religião ou temos de fato uma perseguição calculada à liberdade? Veja uma resposta possível no artigo de Mauro Lopes...


"O biblista italiano Alberto Maggi indica que Jesus libertou a pessoa do cabresto da religião institucional: “Jesus, emancipando o homem da religião, das leis e das prescrições que regulavam a relação com a divindade – quer dizer, de tudo o que o crente era obrigado a fazer para agradar a seu deus – tem favorecido o desenvolvimento e o crescimento da pessoa. A maturidade, de fato, só acontece na afirmação crescente da própria liberdade de pensamento e autonomia de movimento sem ter que ser sujeito a restrições religiosas.” Por isso, as elites das religiões institucionais no âmbito do cristianismo têm perseguido sistematicamente as pessoas que desejam seguir os passos do Mestre, apropriando-se da liberdade que Jesus estimulou: “Essa liberdade é intolerável pela religião, que, para existir, deve dominar as pessoas, torná-las submissas e infantis, sempre necessitadas de uma autoridade superior que decida o quê e como fazê-lo.”


Coroação de Espinhos, 1622-3, Dirck van Baburen (1595-1624)

Guerras de religião? É a liberdade que é perseguida


Alberto Maggi é um biblista italiano excepcional. Ele bebe da mesma fonte da teologia latino-americana, especialmente da Teologia da Libertação: a busca incessante da originalidade da mensagem de Jesus. É sacerdote, religioso da Ordem dos Servos de Maria e diretor do Centro de Estudos Bíblicos G. Vannucci, localizado na minúscula aldeia de Montefano, na região do Marche, na Itália, de pouco mais de 3 mil habitantes.
Os padres Júlio Lancelotti e Francisco Cornélio são dois dos mais entusiasmados divulgadores de sua obra, no Brasil. Há três de seus livros editados no país: A loucura de Deus – O Cristo de João (Paulus, 2015), Nossa Senhora dos Heréticos (Paulinas, 1991) e Jesus e Belzebu, Satanás e Demônios (Santuário, 2003).
No artigo a seguir, Maggi escreve sobre a perseguição aos seguidores de Jesus: “Para o cristão, se ele for fiel ao Senhor e à sua mensagem, a perseguição, em suas mais variadas formas, abertas ou mascaradas, veladas ou evidentes, está sempre presente”. A razão é meridiana: “O mundo corteja e recompensa aqueles que não o incomodam, mas desencadeia toda sua ferocidade contra aqueles que, com sua própria existência são uma clara denúncia da injustiça do sistema”.
O biblista italiano indica que Jesus libertou a pessoa do cabresto da religião institucional: “Jesus, emancipando o homem da religião, das leis e das prescrições que regulavam a relação com a divindade – quer dizer, de tudo o que o crente era obrigado a fazer para agradar a seu deus – tem favorecido o desenvolvimento e o crescimento da pessoa. A maturidade, de fato, só acontece na afirmação crescente da própria liberdade de pensamento e autonomia de movimento sem ter que ser sujeito a restrições religiosas.” Por isso, as elites das religiões institucionais no âmbito do cristianismo têm perseguido sistematicamente as pessoas que desejam seguir os passos do Mestre, apropriando-se da liberdade que Jesus estimulou: “Essa liberdade é intolerável pela religião, que, para existir, deve dominar as pessoas, torná-las submissas e infantis, sempre necessitadas de uma autoridade superior que decida o quê e como fazê-lo.”
[Mauro Lopes]
Leia a íntegra do artigo abaixo (ou o original em italiano clicandoaqui):
O seguidor de Jesus não se surpreende quando chega a perseguição, pelo contrário, deve preocupar-se quando ela está ausente: “Ai de vocês, se todos os elogiam…” (Lc 6,26). Para o cristão, se ele for fiel ao Senhor e à sua mensagem, a perseguição, em suas mais variadas formas, abertas ou mascaradas, veladas ou evidentes, está sempre presente: “Todos os que querem viver dignamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (2 Tm 3,12).
O mundo corteja e recompensa aqueles que não o incomodam, mas desencadeia toda sua ferocidade contra aqueles que, com sua própria existência são uma clara denúncia da injustiça do sistema: “Ele se tornou uma condenação para os nossos pensamentos, e somente vê-lo já é coisa insuportável. Sua vida não se parece com a dos outros” (Sb 2, 14-15). Sobretudo o poder, especialmente o religioso, não tolera a existência de pessoas livres, que escapam de seu domínio e não podem ser controladas. A adesão a Jesus e ao projeto do Pai para a humanidade faz as pessoas totalmente livres: “Conhecerão a verdade e a verdade libertará vocês” (Jo 8,32). A liberdade é a condição para a presença do Espírito, e o Espírito torna o homem cada vez mais livre: “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres” (Gl 5,1) e “Onde está o Espírito do Senhor, aí existe a liberdade” (2 Cor 3,17).
Jesus, emancipando o homem da religião, das leis e das prescrições que regulavam a relação com a divindade – quer dizer, de tudo o que o crente era obrigado a fazer para agradar a seu deus – tem favorecido o desenvolvimento e o crescimento da pessoa. A maturidade, de fato, só acontece na afirmação crescente da própria liberdade de pensamento e autonomia de movimento sem ter que ser sujeito a restrições religiosas. É por isso que Jesus desvinculou seus seguidores das regras típicas da religião, como as observâncias alimentares, as proibições e interdições: “Não pegue, não prove, não toque” (Cl 2,21). Jesus não impôs nem períodos nem dias consagrados ao culto divino, não pediu sacrifícios e não admitiu que houvessem pessoas consideradas inferiores, reconhecendo às mulheres a mesma dignidade dos homens (Gl 3,28). Cristo não liga seus discípulos a leis divinas, mas comunica-lhes o Espírito, isto é o mesmo amor do Pai, um Deus que não absorve as energias dos humanos, mas comunica-lhes as Suas!
Essa liberdade é intolerável para religião, que, para existir, deve dominar as pessoas, torná-las submissas e infantis, sempre necessitadas de uma autoridade superior que decida o quê e como fazê-lo. Os escravos sempre têm detestado seus donos, mas ainda maior é a ira daqueles que se tornaram escravos voluntariamente em comparação às pessoas livres e independentes!
No evangelho temos o exemplo de Marta e Maria. Marta, mulher que vive relegada na cozinha, de acordo com o que manda a tradição, não tolera a liberdade que sua irmã Maria toma, quer dizer, ela si entretém, como um homem, com o Mestre (Lc 10,38-42). Essa é também a cólera dos “falsos irmãos, os intrusos que se infiltraram para espionar a nossa liberdade que temos em Cristo Jesus, afim de nos escravizar” (Gl 2,4).
Aqueles que seguem Jesus, “Luz do Mundo”, não andarão nas trevas, mas terão a luz da vida (Jo 8,12), enquanto aqueles que vivem nas trevas odeiam a luz (Jo 3,20). Jesus não convida a fazer qualquer cruzada contra as trevas, mas pede à Luz de brilhar mais e mais, porque “a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram apagá-la” (Jo 1,5).
Quem não quer ser perseguido deve renunciar à plenitude da liberdade, e resignar-se a viver regrado pelas leis e não mais animado pelo Espírito. Mas, na perseguição, há uma grande certeza: Deus sempre ficará do lado dos perseguidos (Mt 5,10-11) e nunca do lado daqueles que perseguem, mesmo se eles pretendem fazer isso em seu nome. “E vai chegar a hora em que alguém, ao matar vocês, pensará que está oferecendo um sacrifício a Deus” (Jo 16,2). Por isso Jesus garante: “não temais os que matam o corpo, mas não tem poder de matar a alma” (Mt 10,28).

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Mino Carta sobre a Prepotência dos Golpistas, o Estado de Exceção e a Resignação de quem tem seus Direitos vilipendiados...



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Ensina o professor Pedro Serrano que um Estado de Exceção pode permitir-se todas e quaisquer exceções. Tal a situação em que o Brasil precipita depois do golpe de 2016. E as exceções se multiplicam, cada vez mais daninhas. Não há lei que não possa ser desrespeitada, donde o primeiro resultado é a transformação da Justiça em injustiça. A exceção implica a cínica operação de legalizar o ilegal.

Não se justifica a surpresa, diante de um golpe perpetrado pelos Três Poderes da República com o apoio incondicional da propaganda midiática encabeçada pela Globo e de policiais transformados em jagunços da casa-grande. Deu no que deu e não se enxerga a mais pálida chance de mudança, muito pelo contrário. As máfias fazem o que bem entendem.

No momento, confirmado no Planalto o presidente ilegítimo e corrupto, trata-se de manter a casa-grande no poder excepcional concedido pela nossa Idade Média pelo tempo que lhe aprouver. E lá vem a perspectiva do golpe do parlamentarismo, já premiada pelos beneplácitos da Globo e da afinadíssima dupla Michel Temer e Gilmar Mendes. O nihil obstat eclesiástico.

O Brasil já passou por isto, quando a casa-grande, então apoiada pelas Forças Armadas, pretendeu limitar o poder de João Goulart, o vice de Jânio Quadros renunciatário e seu substituto constitucional. O parlamentarismo durou dois anos, revogado finalmente por um plebiscito histórico que devolveu o País ao presidencialismo.

O parlamentarismo na marra não passou de prólogo do golpe de 1964. A manobra esboçada no momento nasce da ausência de um candidato viável da reação e as quadrilhas no poder não querem correr riscos. Certo é que alguma exceção será lançada ao atual mar de lama e o parlamentarismo parece ser a opção excogitada por enquanto.

Parlamentarismo à francesa, à italiana, à alemã? Talvez à moda da casa. Vale lembrar a noite que a Câmara dos Deputados viveu dia 2 de agosto. Espetáculo deprimente a representar o país primitivo. Com raras exceções, surgiram na arena figuras de ópera-bufa, carentes no comportamento e na lida com o vernáculo, uma grei de paus-mandados. Pergunta um leitor na seção de cartas desta edição: e seria esta a casa da democracia? Trata-se, é verdade factual, de um circo mambembe.

Tentemos imaginar o que seria o parlamentarismo interpretado por esta trupe. De saída, além do ridículo de suas encenações, o instrumento obediente às quadrilhas para perpetuar o Estado de Exceção, sem previsão quanto à duração da desgraça. A bem das máfias. E o Brasil que se moa. De volta aos tempos da colônia, súdito genuflexo, posto à venda a preço de banana.

A ditadura varguista durou menos do que aquela garantida pela casta dos quatro-estrelas. O PSDB chegou ao poder com a eleição de FHC, comprou votos para reelegê-lo. Vinha com um projeto de comandar ao menos por 20 anos. Durou menos do que os governos do PT, abatido pelo golpe de 2016, cujo objetivo era prender Lula, demolir seu partido e impor um Estado de Exceção com o propósito de durar ad infinitum. Instaurado o parlamentarismo, com estes Judiciário e Legislativo, o Executivo será como a casa-grande deseja.

Pergunto aos meus desolados botões: é pessimismo demais? Não é não, respondem, mestos. O povo mostra-se incapaz de reagir, inclinado como sempre à resignação. A história oferece explicações para tanta inércia, nada acontece por acaso. Às nossas costas a terra predada pela colonização portuguesa, três séculos de escravidão, et cetera et cetera. Resultado, desequilíbrio social monstruoso. A registrar o cuidado bem-sucedido dos donos da mansão senhorial em manter a maioria na miséria e na ignorância, embora também eles estejam muito longe do saber. O Estado de Exceção baseia-se nesta situação, que, de resto, jamais permitiu uma autêntica democracia.

Ocorre-me a importância de fortes partidos de esquerda para o progresso político e econômico de países com democracia madura. Do trabalhismo britânico ao comunismo italiano, e não são os únicos exemplos. No Brasil, a esquerda fracassou. Ou porque quem se disse de esquerda mentia, ou porque foi incompetente. Cabe a partidos, tanto de inspiração marxista quanto social-democrática ou fabiana, chegar às massas para politizá-las. Não foi o que se deu por aqui.

O povo brasileiro é doutrinado pela Globo, até as telenovelas prestam-se à obra maligna, para não falar da vulgaridade reinante no vídeo do plim-plim e outros mais. Os movimentos dos sem-terra e dos sem-teto são inegavelmente de esquerda, honra a João Pedro Stedile e Guilherme Boulos. O PT, no entanto, no poder portou-se como todos os demais. Lula e Dilma deram alguns passos significativos no sentido social, tiraram milhões de brasileiros da miséria e os incluíram na sociedade de consumo. Nem por isso os conscientizaram.

O anúncio de que Lula prepara-se a um périplo por diversas praças brasileiras convém ao País. Pelo ex-presidente tenho uma amizade incondicional e nunca deixarei de estar ao seu lado. Recordo que este roteiro esclarecedor que ele se dispõe a cumprir eu o sugeria em abril de 2015. Lula é um grande líder, e não excluiria que fosse capaz de milagres. De todo modo, volto à conclusão do editorial da semana passada: o PT não existe sem Lula, mas Lula não é o PT.

Mino Carta

Na Carta Capital e Contexto Livre

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Bolívar Lamounier, cientista político, sobre a miséria da intelectualidade tucana, por Luis Nassif



"Lamounier expõe de maneira crua as divisões do PSDB. Ele e seu líder, Fernando Henrique Cardoso, historicamente alinhados com o Partido Democrata norte-americano, representam o elo com o pensamento dos EUA, e de lideranças de mercado, como Jorge Paulo Lehman, Armínio Fraga, os herdeiros do Itaú entre outros grupos. Na mídia, os ideólogos mais ostensivos são os economistas Marcos Lisboa e Samuel Pessoa. São eles que fazem as ligações com a alta tecnocracia pública do Tribunal de Contas da União, Secretária Nacional do Tesouro, entre outros." 


Segue o texto de Luis Nassif, publicado no Jornal GGN

O cientista político Bolívar Lamounier permite uma boa analise de caso. Não apenas a sua história política, que se confunde com a do PSDB, mas por explicitar bem os grupos que compõem o partido.
No plano histórico, saiu da social-democracia da Constituinte para a visão mais simples e preconceituoso do neoliberalismo, aquela que reduz o projeto de Nação a uma mera questão de corte de gastos sociais. A idade enrijeceu a alma e o espírito do sobrinho neto de Gastão Lamounier, o lírico compositor de almas.
Na quadra atual, ele expõe de maneira crua as divisões do partido. Ele e seu líder, Fernando Henrique Cardoso, historicamente alinhados com o Partido Democrata norte-americano, representam o elo com o pensamento dos EUA, e de lideranças de mercado, como Jorge Paulo Lehman, Armínio Fraga, os herdeiros do Itaú entre outros grupos. Na mídia, os ideólogos mais ostensivos são os economistas Marcos Lisboa e Samuel Pessoa. São eles que fazem as ligações com a alta tecnocracia pública do Tribunal de Contas da União, Secretária Nacional do Tesouro, entre outros.
Os demais grupos são os fisiológicos, como Aloysio Nunes e outros Ministros, e as bandas barra pesadas de Aécio Neves e José Serra.
A entrevista de Bolívar ao Valor de hoje, tocada por dois belos entrevistadores - Ricardo Mendonça e Cristiane Agostine – é um bom raio X desse grupo que, agora que o PSDB se esfacela, se prepara para pular para outro barco. E não há barco no horizonte nem eles, com o notável distanciamento que sempre mantiveram em relação ao povo, sabem como iniciar a construção de um mero salva-vidas.
Começa pela fé cega nas duas reformas – a da Previdência  e a trabalhista. Segue o padrão Globonews de simplificação: basta as duas reformas para o investimento retomar. Capacidade zero de analisar o quadro político, o clima de conflagração social, os impactos da PEC do Teto na miséria, na fome, na saude e na educação e também na democracia, já que medidas dessa ordem só passam em regimes de exceção, como o atual.
Repete a mantra da “equipe econômica de primeira linha”. Tomem-se esses papagaios de fraque – ele, o Ministro Luís Roberto Barroso – e peça-lhes o nome dos membros da equipe. Com exceção do Ministro da Fazenda e do presidente do Banco Central, não se lembrarão de nenhum. Mas são obedientes às ordens de repetição de slogans.
Defende a legitimidade do governo Michel Temer, porque ele foi votado na chapa de Dilma Rousseff, logo tem a legitimidade dos votos dela. Aí se trata de um caso do militante que atropelou miseravelmente a idoneidade intelectual do cientista político.
E, na sequência, endossa a tese de que a impopularidade de Temer é um trunfo, na medida em que um presidente impopular não precisa se preocupar em agradar os eleitores. Conseguiu suplantar até Carlos Guilherme Motta, o Motinha, no desrespeito à sua própria biografia.
Enaltece as reformas de Temer e, ao mesmo tempo, desanca o Congresso – que vota a favor das reformas de Temer – admitindo que se move alimentado pela corrupção. Mais um pouco, chegará ao nível de Marco Antônio Villa.
Sobre o apoio do PSDB a Temer, a única crítica é em relação ao racha do partido. Se fosse todo a favor de Temer, sem problema, continuaria partido político.
Em sua opinião, o PSDB “é um partido paralisado, incapaz de tomar decisões porque não tem identidade. E sequer prudência e sabedoria”. Provavelmente porque não tem mais sábios. Mas, a não ser a constatação óbvia de que o partido virou uma miscelânea, não há uma conceituação mais apurada, à altura do cientista político que, em fins dos anos 80, teorizava sobre o novo agente político, a opinião pública pós-ditadura.
E reage energicamente quando indagado se o PSDB precisa pedir desculpas. Aí, consegue vocalizar o único discurso com que ele e outros intelectuais, como seu guru FHC, orientaram o partido: o anti-petismo.
Aí, depois de dizer que o partido se desmilinguiu, o anti-petismo acende a única vela a iluminar essa escuridão cósmica, e o bravio Bolívar faz um chamamento à guerra: "Mas não vamos dar a mão à palmatória. Vamos repor os problemas em discussão. Fazer a fuga para frente, não para trás”. Corre um risco grande. Se aparecer em uma reunião de neotucanos e se apresentar, será espancado como um bolivariano, devido ao nome Bolívar, pois essa é a única turma que os intelectuais tucanos cativaram com sua profundidade de piscina infantil.
Aí, a pergunta fatal do belo entrevistador: “No manifesto, o PSDB diz que nasceu para ficar longe das benesses do poder, mas perto do pulsar das ruas. Apoiar Temer é isso?”
E o que o intelectual Bolívar respondeu? Adivinharam: "A adesão ao governo Temer foi pela governabilidade, para Temer ter 40 votos e alguns ministros de prestígio. Os quatro ministros não estão lá para extrair benesses, mas para ajudar”.
Alvíssaras!

Resenha do livro Comentários a uma sentença anunciada (onde 126 juristas questionam o processo contra Lula, por Sérgio Moro). Por Fábio de Oliveira Ribeiro


"Ao condenar Lula, Sérgio Moro foi ilógico (como afirma Claudia Maria Barbosa), mas ele atendeu ao cânone da imprensa. Como a Lava Jato também opera no campo jornalístico, não podemos deixar de admitir que a sentença se ajustou perfeitamente à ilogicidade da imprensa (...) ". Fábio de Oliveira Ribeiro




Jornal GGN. - Ao responder um comentário no texto que escrevi sobre o evento na PUC,  reservei-me no direito de falar sobre o livro “Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula”, Bauru, 2017, vários editores, depois de ter lido a obra. Fiz hoje uma leitura parcial do livro.
Selecionei alguns autores aos quais dediquei minha atenção. Como tenho escrito sobre a Lava Jato e sobre Sérgio Moro, farei, quando necessário, referências aos meus próprios textos.
O texto de Cecília Caballero Lois (fls. 97/100) é primoroso, mas contém uma omissão significativa. Ao analisar as falácias do juiz da Lava Jato ela deixou de apontar uma que me parece fundamental: o fato do Juiz não ter levado até as ultimas consequencias a autoridade em que foi investido.
Quando da condução coercitiva de Lula, um oficial militar desafiou a autoridade de Sérgio Moro impedindo que Lula fosse transportado de São Paulo para Curitiba. Este fato foi amplamente divulgado na internet: Aeronáutica impediu Moro de levar Lula a CuritibaO plano de prender Lula poderia ter acabado em tragédiaO mistério de 4 de março: tropa da Aeronáutica impediu que Lula fosse levado para Curitiba. Coronel assumiu o controle do aeroporto de Congonhas e não deixou avião da PF decolar.
Ao proferir a sentença, Sérgio Moro justificou a condução coercitiva. Segundo ele nenhum abuso ou ilegalidade teria sido cometido. Todavia, se adotarmos o raciocínio jurídico do juiz pelo menos uma ilegalidade ocorreu: a do militar que impediu o cumprimento da decisão judicial.
Fiz uma leitura muito superficial da longa sentença condenatória de Lula. O texto não faz referência à ilegalidade cometida pelo militar, tampouco determina a adoção de providências contra o mesmo.
Todo juiz tem o dever funcional de aplicar e fazer aplicar a Lei. Ele não pode fazer aplicar a Lei de maneira seletiva, pois o texto constitucional é claro: todos são iguais perante a Lei. A jurisdição só encontra limites na própria Lei, portanto, a ordem válida expedida pelo juiz competente não pode ser desafiada ou descumprida por ninguém.  
Em razão de sua omissão, Sérgio Moro admitiu que sua autoridade não pode ser exercida a todos os cidadãos ou, pior, que ele mesmo aplica a Lei de maneira seletiva. A conclusão lógica é inevitável: condenado por Moro Lula pode dizer que foi discriminado aos olhos da Lei, pois o próprio juiz resolveu não aplicar o rigor da Lei contra o militar que desafiou ou descumpriu sua ordem.
Claudia Maria Barbosa também escreveu um texto bem fundamentado (fls. 110/116. Além disto, ela se expressa de maneira concisa e elegante:
“A persuasão é inimiga da lógica, mas a lógica é amiga do Direito. Uma decisão ilógica, sobretudo em matéria penal, é insubsistente e incorreta.” (fls. 111)
A frase é perfeita, mas ela não se aplica à Lava Jato, operação que desde o início opera entre o campo jurídico e o campo jornalístico. Se a Lava Jato operasse apenas no campo jurídico, o texto de Claudia Maria Barbosa certamente não poderia ser objeto de contestação.
Desde que iniciou sua cruzada Sérgio Moro atua como juiz e como jornalista do processo. Portanto, ao decidir o processo de Lula ele deveria necessariamente atender tanto aos requisitos jornalísticos quanto os princípios jurídicos.
É fato: a imprensa brasileira é ilógica. Contrariando toda imprensa européia, russa e parte da imprensa norte-americana, ela chama o golpe de 2016 de Impedimento. Este divórcio entre as representações do golpe de estado já foram objeto de reflexão. O caráter ilógico da imprensa fica ainda mais evidente quando vemos os jornalistas elogiarem as virtudes Michel Temer, usurpador que produziu uma depressão econômica, e criticar Lula e Dilma (dois governantes que conseguiram reerguer a economia brasileira). Os jornalões se dizem democráticos, mas não escondem que querem afastar Lula da disputa de 2018.
Ao condenar Lula, Sérgio Moro foi ilógico (como afirma Claudia Maria Barbosa), mas ele atendeu ao cânone da imprensa. Como a Lava Jato também opera no campo jornalístico, não podemos deixar de admitir que a sentença se ajustou perfeitamente à ilogicidade da imprensa. A autora do texto, porém, não foi capaz de notar que a virtude jornalística da condenação de Lula reforça a natureza viciosa da sentença proferida por Sérgio Moro.
Gosto muito da maneira como Eugênio Aragão escreve, sempre procurando um equilíbrio entre a erudição e o humor. No texto de autoria dele (fls. 148/150) faltou um parágrafo, aquele que eu mesmo gostaria de ter escrito. Aproveito a oportunidade para completar o mestre sem o temor de ser censurado.
“O Ministro Marco Aurélio disse certa feita que Sérgio Moro age como um justiceiro. Verdade. Como todos os justiceiros (quando digo isto penso especialmente no Cabo Bruno). A Lei que os justiceiros aplicam não é aquela que está em vigor e sim o simulacro da Lei que emana de suas augustas pessoas. Somente o justiceiro pode decidir quem vai morrer ou viver, ficar em liberdade ou ser preso, ter ou não garantias prescritas em Lei. Como um bom justiceiro Sérgio Moro não deixou a desejar. Ele cumpriu fielmente seu papel ao condenar Lula e por isso mesmo a sentença dele é nula.” 
Eu sei, eu sei. Aragão conseguiria dizer a mesma coisa de uma maneira bem mais requintada e bem humorada.
James Walker Jr escreveu um texto equilibrado e bem fundamentado. Todavia, o objeto de estudo (a ilegal criminalização do direito de defesa e da prerrogativa do advogado) se caracteriza desde logo como uma coisa monstruosa. Um Juiz que advoga contra o que expressamente diz a Constituição e o Estatuto do Advogado comete uma teratologia inenarrável, imperdoável e não merece ser confrontado com o rigor da doutrina, tampouco tem direito à uma linguagem cometida e mediada pela urbanidade.
Na palestra que proferiu na PUC quando do lançamento do livro aqui resenhado, o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello pediu que aos advogados e juristas que sejam mais enérgicos e contundentes ao confrontar os abusos cometidos pelo Estado de Exceção e pela Lava Jato. Não podemos deixar de atender seu pedido, especialmente quando o que está em questão é o direito de defesa e a prerrogativa do advogado.
Os ataques de Moro ao advogado de Lula e ao direito de defesa poderiam ser repelidos mais ou menos assim:  
“Qual foi maluco? Ce ta pensando que não vai precisar de advogado no futuro? Justo você que cometeu o crime de vazar ilegalmente gravações da presidenta da república? Se liga, mano... se defecar no direito de defesa hoje, você poderá ser soterrado por uma tonelada de merda amanhã.”
Francisco Celso Calmon escreveu um bom texto (fls. 173/176). Mas ele cometeu um erro terrível: citou Herbert Marcuse. Quando se trata de Sérgio Moro é preciso ser menos sofisticado e mais didático, afinal o juiz da Lava Jato lê “o réu deve provar sua inocência” onde o texto da constituição diz expressamente que o cidadão “será presumivelmente inocente até prova em contrário”. Isto para não falar no Dellagnol, procurador que acredita que sua convicção da culpa é a rainha de todas as provas.
Menos sofisticação, Calmon. Quando juízes e promotores confundem a nuvem com Juno, ou melhor, quando elas tratam a “marca da pegada” (a prova) como uma “pegada de mercado” (a imposição de uma condenação desejada pelos banqueiros) a autoridade do discurso cede espaço ao discurso de autoridade. Sérgio Moro e Dellagnol se colocam num pedestal: eles dizem o Direito independentemente do que diz a Lei, a doutrina e a jurisprudência Portanto, não há argumento racional que possa ser utilizado contra eles.
Há bem pouco tempo um promotor paulista confundiu Hegel com Engels. Não creio que os meninos lavajateiros sejam leitores ou admiradores de Marcuse. Além disso, Dellagnol pode acabar denunciando Marcuse como terrorista e Sérgio Moro condenando-o por ter ajudado Lula a ocultar a propriedade do Triplex.
Gisele Cittadino diz que “A sentença condenatória é algo terrível se recai sobre um inocente.” (fls. 190). Ela disse tudo, mas há algo mais que poderia ser dito.
A sentença injusta é algo terrível, uma mácula que recai sobre a história de quem a proferiu. Joana D’Arc foi absolvida pela História. Sérgio Moro conseguirá entrar nela como um duplo de Cauchon.
João Victor Esteves Meirelles escreveu um texto primoroso (fls. 215/223). Desgraçadamente, ele incorreu no mesmo erro que Cláudia Maria Barbosa.
Meirelles analisou a sentença de uma perspectiva extremamente técnica, mas se esqueceu que Sérgio Moro não estava obrigado apenas a atender a técnica jurídica. Do ponto de vista jornalístico (que é o que importa para os lavajateiros dentro e fora do Estado e dos aquários dos jornalões) a condenação de Lula atendeu o principal requisito da técnica jornalística: ela deu mais valor às matérias dos jornais que acusaram Lula do que ao documento público que outorga a propriedade do Triplex a um terceiro.
Como no caso do Mensalão do PT, no caso de Lula o Judiciário também fez o que deveria ter feito: se limitou a homologar a condenação do réu que já vinha sendo reiterada diariamente pelos jornais, revistas e telejornais. Sobre a privatização da justiça vide este post.
Leonardo Isaac Yarochewaky escreveu algo que merece ser lido com atenção:
“Verifica-se, nesse diapasão, que o ex-presidente Lula vem sendo tratado pelo juiz Federal Sérgio Moro como inimigo, e como inimigo é negado a Lula a condição de pessoa. (fls. 313)
Grifei a expressão é negado a Lula a condição de pessoa por que ela me parece não fazer jus a Lula. O ex-presidente não é apenas uma pessoa. Ele é muito mais que isto. Lula é um mito (como gosta de dizer FHC), ou melhor, ele representa a corporificação de um mito extremamente perigoso aos olhos da elite brasileira: o de que o povo pode livremente escolher seu presidente e, pior, que um presidente escolhido pelo povo pode ser mais eficiente do que qualquer pessoa ungida para o cargo pelos herdeiros das capitanias hereditárias.
Ao ler a sentença fiquei com a impressão de que Sérgio Moro não julgou a pessoa Lula. O que ele julgou foi o mito que Lula corporifica. Se pudesse julgar o processo divorciando o homem do mito, o juiz da Lava Jato provavelmente teria escrito 4 ou 5 páginas para declarar que o documento público tem mais valor do que acusações jornalística e que ele prova que o réu não é proprietário do Triplex.
Desgraçadamente para Lula e para Sérgio Moro também (pois ele arriscou sua reputação pessoal e será eternamente comparado a Pierre Cauchon) não é possível separar o homem inocente do mito culpado aos olhos da elite a que o juiz pertence. Isto talvez explique porque Moro se viu obrigado a escrever 218 páginas contra o mito para condenar injustamente o homem sem atribuir o devido valor à prova documental (refiro-me aqui à certidão do registro de imóveis).
Roberto Tardelli afirma que “Inadequada é a conduta de quem deveria preservar a privacidade das partes envolvidas no processo.” (fls. 456). Ele negou, portanto, uma característica essencial da Lava Jato, que é existir e operar efeitos entre dois campos: o campo jurídico e o campo jornalístico.
É verdade que o processo exige privacidade, mas a imprensa só existe através da publicidade. Durante o processo e até a prolação da sentença condenatória, Sérgio Moro atendeu fielmente os interesses do campo jornalístico. Ele agiu como um jornalista e em razão disso ele não tinha isenção para julgar Lula. Tardelli não percebeu isto. Ele preferiu tratar o jornalista federal da Lava Jato como se ele fosse apenas um juiz de primeira instância, coisa que Sérgio Moro provou sobejamente que não é ao criminosamente vazar gravações de conversas da presidenta da república para ajudar a derrubá-la.
Já disse isto em outra oportunidade, e vou dizer novamente. Não me agrada o uso do termo Lawfare. Por isto nem mesmo me dei ao trabalho de ler o texto de fls. 343/347. Toda vez que a linguagem se distancia da expressão popular, a injustiça se infiltra na sociedade porque ela vai sendo dividida entre os iniciados (detentores do saber) e o populacho (submetidos pela ignorância).
O Direito se expressa através da linguagem e a justiça só pode ser feita quando todos compartilham o mesmo código. Não por acaso a palavra código tem vários significados, dentre eles:
“1- conjunto ordenado de disposições, normas, preceitos, que regulam uma matéria jurídica;”
“4- sistema de sinais convencionais destinados a representar e a transmitir uma informação;”
“7 – LINGUÍSTICA sistema de relações estruturadas entre signos ou conjuntos de signos.”
(Dicionário da Língua Portuguesa, 2009, Porto Editora, p. 372/373)
Lawfare não pertence ao nosso código (legal e lingüístico). O fenômeno representado pela palavra inglesa tampouco é desconhecido no Brasil, país que há bem pouco tempo viveu sob uma Ditadura Militar que garantia formalmente a integridade física e moral do detento enquanto submetida prisioneiros ao tormento da Pimentinha, do Submarino, da Cadeira do Dragão e do Pau-de-arara. O uso do direito como instrumento político de inclusão ou de exclusão não é novidade entre nós. Portanto, não precisamos importar conceitos e vocábulos estrangeiros que apenas e tão somente afastarão os juristas das pessoas e estas de sua própria História.
Wadih Damous acusou Moro de ter assassinado o Direito (fls. 520/521). É verdade que ele apunhalou a legislação ao condenar Lula, mas ele não pode ser considerado culpado pela morte do Direito. No Brasil o Direito começou a morrer diante das câmeras de TV exatamente quando Luiz Fux condenou José Dirceu porque o réu não provou sua inocência. Como discípulo, Moro não pode ser acusado do crime cometido por seu mestre.
Agradou-me muito o texto de fls. 533/537. Yuri Carajelescov saiu do campo jurídico, onde diversos juristas continuam a jogar muito embora o jogo tenha mudado e seja jogado por regras diversas daquelas que foram consagradas na CF/88. Se queremos entender melhor o fenômeno da Lava Jato, inclusive e principalmente para poder criticar a atuação dos lavajateiros dentro e fora dos Tribunais, será preciso conhecer melhor o campo jornalístico que não só fomenta decisões, como as legitima cobrindo de aplausos os juízes-jornalistas.
Peço desculpas aos autores que não foram citados. O livro é longo e eu o comprei no dia 14/08/2017. Para ler e resenhar os textos dos autores que foram aqui mencionados fui obrigado a encontrar tempo entre os prazos. Os prazos, sempre inimigos mortais dos advogados.