Páginas

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Trump, nova etapa ou retrocesso na História? Artigo de Leonardo Boff



  "Estamos, pois, diante de uma profunda crise de civilização. Diluiram-se as estrelas-guias e surgiu seu oposto dialético: a busca de segurança, de ordem, de autoridade, de normas claras e de caminhos bem definidos. Na base do conservadorismo e da direita em política, em ética e em religião se encontra este tipo de percepção das coisas. Ela está a um passo do fascismo como se verificou na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini.
   'Na Europa, na América Latina e nos Estados Unidos estas tendências foram ganhando força social e política. No Brasil foi este espírito conservador e direitista que projetou o golpe de classe jurídico-parlamentar que destituíu a Presidenta Dilma Rousseff. O que se seguiu foi a implantação de políticas claramente de direita, anti-povo, negadoras de direitos sociais e retrogradas em termos culturais."

Fonte do Cartton/Cartoon Source: Printrest

Trump: uma nova etapa da história?


Artigo de Leonardo Boff

        Já há anos se notava, um pouco em todas as partes do mundo, a ascensão de um pensamento conservador e de movimentos que se definiam como de direita. Com isso se sinalizava um tipo de sociedade na qual a ordem prevalecia sobre a liberdade, os valores tradicionais se impunham aos modernos, e a supremacia da autoridade se sobrepunha à liberdade democrática.

         Esse fenômeno se deriva de muitos fatores mas principalmente pela erosão das referências de valor que conferiam coesão a uma sociedade e forneciam um sentido coletivo de convivência. O predomínio da cutura do capital com seu propósito ligado ao individualismo, à acumulação ilimitada de bens materiais e principalmente à competição deixando praticamente parco espaço para a cooperação, contaminou praticamente toda a humanidade, gerando confusão ético-espiritual e perda de sentimento de pertença a uma única humanidade, habitando uma Casa Comum. Emergiu a sociedade líquida, na linguagem de Bauman, na qual nada é sólido, acrescido com o espírito pós-moderno do every thing goes do vale tudo, na medida em que conta é o que realiza um objetivo buscado por cada um, consoante suas preferências.

         Estamos, pois, diante de uma profunda crise de civilização. Diluiram-se as estrelas-guias e surgiu seu oposto dialético: a busca de segurança, de ordem, de autoridade, de normas claras e de caminhos bem definidos. Na base do conservadorismo e da direita em política, em ética e em religião se encontra este tipo de percepção das coisas. Ela está a um passo do fascismo como se verificou na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini.

         Na Europa, na América Latina e nos Estados Unidos estas tendências foram ganhando força social e política. No Brasil foi este espírito conservador e direitista que projetou o golpe de classe jurídico-parlamentar que destituíu a Presidenta Dilma Rousseff. O que se seguiu foi a implantação de políticas claramente de direita, anti-povo, negadoras de direitos sociais e retrogradas em termos culturais.

         Mas essa tendência conservadora alcançou sua dimensão mais expressiva na potência central do sistema-mundo: os Estados Unidos, confirmada pela eleição de Donald Trump à presidência daquele país. Aqui o conservadorismo e a política de direita se mostram sem metáforas e de forma deslavada e até rude como ocorreu na quebra de relação por parte de Tump com o presidente do México que foi grosseiramente humilhado.

         Trump, em seus primeiros atos, começou a desmontar as conquistas sociais alcaçadas por Obama. Populismo, nacionalismo, patriotismo, conservadorismo, isolacionismo são suas características mais claras.

         Seu discurso inaugural é aterrador:”de hoje em diante uma nova visão governará a nossa terra. A partir deste momento só os Estados Unidos serão o primeiro”. O “primeiro” (first) aqui deve ser entendido como “só (only) os Estados Unidos vão contar”. Radicaliza sua visão ao término de seu discurso com evidente arrogância:”Juntos faremos que os Estados Unidos voltem a ser fortes. Faremos que os Estados Unidos voltem a ser próperos. Faremos que os Estados Unidos voltem a ser orgulhosos. Faremos que os Estados Unidos voltem a ser seguros de novo. E juntos faremos que os Estados Unidos sejam grande de novo”.

         Subjacente a estas palavras funciona a ideologia do “destino manifesto”, da excepcionalidade dos Estados Undios, sempre presente nos presidentes anteriores inclusive em Obama. Quer dizer, os Estados Unidos presumem possuir uma missão única e divina no mundo, a de levar seus valores de direitos, da propriedade privada e da democracia liberal para o resto da humanidade.

         Para ele o mundo praticamente não existe. E se existe é visto de forma negativa. Quebrou os laços de solidariedade para com os aliados tradicionais como a União Européia e retirou-se da cena internacional deixando cada país livre para eventuais aventuras contra seus contendores históricos e abrindo espaço para o expancionismo de potências regionais eventualmente incluindo guerras letais.

         Da personalidade de Trump se pode esperar tudo. Habituado a negócios tenebrosos como são, de modo geral, os empreendimentos imobiliários novaiorquinos, sem qualquer experiência política, pode deslanchar crises para a sociedade norte-americana e  altamente ameaçadoras para o resto da humanidade, como por exemplo, uma eventual guerra contra China ou a Coreia do Norte, onde não se exclui a utilização de armas nucleares.

         Sua personalidade denota características psicológicas desviantes; é narcisista, com um ego super-inflacionado, maior que seu própro país.

         A frase que nos assusta é esta:”de hoje em diante uma nova visão governará a terra”. Não sei se está pensando apenas nos Estados Unidos ou no planeta Terra. Provavelmente as duas coisas para ele se identificam. Se for verdade, teremos que rezar para que o pior não aconteça para o futuro da civilização.

Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu, Convivência, respeito e tolerância, Vozes 2006.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O curta de animação sobre uma menina negra e surda que vem emocionando a todos pelo mundo



 O curta de animação Tamara, de Jason Marino e Craig Kitzmann, produzido pelo House Boat Animation, conta a história de uma menininha negra e surda que tem o sonho de ser bailarina. Sensível e belo, o curta toca em algumas feridas sociais, em especial o preconceito de cor e sobre as pessoas com algum tipo de deficiência. Assistam e compartilhem.... Carlos Antonio Fragoso Guimarães


Dois filmes sobre o que resta, em meio às ruínas de uma sociedade tcnocrática, por José Geraldo do Couto


daniel-blake-1-1200x520

Em “Eu, Daniel Blake”, Ken Loach resgata solidariedade e integridade num mundo onde a tecnologia converteu-se em prisão. “O que está por vir”, da jovem Mia Hansen-Løve, opõe duas estratégias para confrontar o sistema
Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
O ano cinematográfico começa bem. Dois filmes de pungente atualidade estão em cartaz nos cinemas brasileiros: O que está por vir, de Mia Hansen-Løve, Urso de Prata de melhor direção em Berlim, e Eu, Daniel Blake, de Ken Loach, Palma de Ouro em Cannes. São bem distintos em termos de temática, ambientação e estilo, mas talvez haja entre eles um ponto comum: a angústia diante dos rumos que a vida está tomando na Europa e no mundo.
Kafka proletário
Em plena forma, o veterano Loach encena a saga de Daniel Blake (Dave Johns), um marceneiro de Newcastle que, impedido de trabalhar por problemas cardíacos, busca no labirinto tecnocrático britânico um meio de receber o auxílio-saúde a que, teoricamente, teria direito. Em sua odisseia por guichês e repartições, ele conhece casualmente a desempregada Katie (Hayley Squires), jovem mãe solteira de duas crianças, a quem passa a ajudar como pode.
Estamos em pleno território de Ken Loach: personagens à margem de uma sociedade injusta, tentando sobreviver com base em valores como integridade e solidariedade. “Ah, mais um apelativo libelo anticapitalista”, dirão os apressados. Devagar com o andor, que há mais coisas para ver aqui.
Um aspecto interessante do filme, que acentua sua atmosfera kafkiana, é o descompasso tecnológico entre o protagonista e o mundo à sua volta. Blake é um artesão, alguém capaz de criar com as mãos objetos ao mesmo tempo belos e úteis, quase uma encarnação do espírito do movimento arts and crafts, surgido na Inglaterra no século XIX. Em decorrência, sente-se aturdido num mundo de relações terceirizadas, mensagens telefônicas automáticas, currículos virtuais.
Loach explora com habilidade o que há de trágico e de cômico nessa inadequação, e talvez esteja nisso o que o filme tem de mais forte. Já a relação de Blake com Katie, sua tentativa de impedi-la de cair na prostituição, sua relação com as crianças, tudo isso está a um passo do lugar-comum. Mas, pensando bem, é dos “lugares comuns” (sem hífen) que costuma tratar o cinema do diretor, isto é, dos lugares por onde circulam as pessoas anônimas, e pelos quais geralmente passamos sem dar atenção.
Talvez não seja casual que tantos de seus filmes tenham no título os nomes de seus personagens: Meu nome é JoeUma canção para CarlaÀ procura de EricJimmy’s hall. É preciso nomear os anônimos, dar-lhes existência e cidadania. Todo o cinema de Loach, de certo modo, consiste nisso, em dar a ver vidas comuns atravessadas pelas contradições e injustiças do mundo (o que não é novidade, desde o neorrealismo italiano). O que eventualmente enfraquece esse gesto artístico é a ênfase didática: por exemplo, no caso de Eu, Daniel Blake, o discurso final da personagem Katie, que repete e dilui tudo o que vimos antes.
Ainda assim, há classe, há força, e sobretudo há coerência e integridade nesse cinema.
A filosofia e a vida
Se o mundo de Eu, Daniel Blake é o mundo do trabalho braçal, o de O que está por vir é o do trabalho intelectual, do pensamento sobre o passado, o presente e o futuro da humanidade. A protagonista, Nathalie Chazeaux (Isabelle Huppert), é uma professora de filosofia de meia-idade, às voltas com um casamento agonizante, uma mãe depressiva, um sistema educacional em crise, um establishment intelectual cada vez mais governado pelo mercado e, principalmente, com o questionamento de sua postura por um ex-aluno brilhante (Roman Kolinka), membro de um coletivo anarquista e adepto da ação direta.
Com segurança e fluência notáveis, a jovem diretora Mia Hansen-Løve organiza uma narrativa episódica, cheia de linhas de fuga, sem perder jamais de vista a questão central que a move: para que serve, afinal, a filosofia? Como “consolação”, refúgio do indivíduo pensante contra as agruras do mundo? Ou, ao contrário, para entender melhor esse mundo e, assim, poder agir para transformá-lo?
“Meu papel é ensinar meus alunos a pensar por conta própria”, define e defende-se a protagonista. O próprio filme, ao deixar várias pontas em aberto, parece adotar a mesma postura. Sua maneira de narrar, com cada cena dando a impressão de começar já no meio e terminar antes do fim, reforça essa sensação de algo inconcluso, deixado aberto à interpretação.
Tudo é narrado com um certo distanciamento, quase nonchalance, como se a câmera estivesse ali por acaso, ou como se os personagens estivessem pensando em outra coisa. No entanto, nada é gratuito ou desleixado, há uma grande precisão no que é mostrado e no que é omitido, mas não se trata da precisão rígida do cinema clássico, que conduz nosso olhar de modo tirânico, mas de uma espécie de precisão suave. Analogamente, os eventos dramáticos parecem amortecidos, esvaziados de ênfase e estardalhaço.
Claro que essa abordagem sutil, esse espaço que se abre para a circulação do olhar e para a intervenção do pensamento, só é possível graças à arte de uma atriz singular, Isabelle Huppert. É interessante, aliás, cotejar sua atuação em O que está por vir e em Elle, também em cartaz. No filme de Paul Verhoeven sua personagem (uma empresária criadora de games eróticos e violentos) tem interfaces semelhantes: com o trabalho, o ex-marido, amantes, filhos, mãe idosa. Mas tudo ali desemboca em uma forma ou outra de violência. É uma Isabelle Huppert que explode, estilhaça, fere (e se fere). Em O que está por vir, ao contrário, todas as violências parecem absorvidas, mediadas, sublimadas. Há mais uma implosão do que uma explosão. Que a mesma atriz seja capaz, com a mesma competência criativa, desses movimentos opostos é uma prova de sua categoria extraordinária.
Extraído do site "Outras Palavras"

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Palestra de Leandro Karnal, em vídeo, sobre a "Revolução do Novo"




Palestra do historiador e professor da USP, Leandro Karnal, em 17 de janeiro de 2007, versando de forma muito inteligente sobre problemas e fatos bastantes atuais,...Crítica sutilmente, mas de forma clara, o próprio posicionamento da Veja e Exama (ou, melhor, da Editora Abril).

domingo, 22 de janeiro de 2017

Artigo do El Pais - Papa Francisco: "“O perigo em tempos de crise é buscar um salvador que nos devolva a identidade e nos defenda com muros”


Do El País:

Papa Francisco fala sobre Trump: “Não gosto de me antecipar aos acontecimentos. Veremos o que faz”


Reportagem de Antonio Caño e Pablo Ordaz


O papa Francisco, durante a entrevista.
O papa Francisco, durante a entrevista. L'OSSERVATORE ROMANO

Na sexta-feira, enquanto Donald Trump tomava posse em Washington, o papa Francisco concedia no Vaticano uma longa entrevista ao EL PAÍS, em que pedia prudência ante os alarmes acionados com a chegada do novo presidente dos Estados Unidos – “é preciso ver o que ele faz; não podemos ser profetas de calamidades” –, embora advertindo que, “em momentos de crise, o discernimento não funciona” e os povos procuram “salvadores” que lhes devolvam a identidade “com muros e arames farpados”.

Durante uma hora e 15minutos, num aposento simples da Casa de Santa Marta, onde mora, Jorge Mario Bergoglio, que nasceu em Buenos Aires há oito décadas e caminha rumo ao quarto ano de pontificado, afirmou que “na Igreja há santos e pecadores, decentes e corruptos”, mas que se preocupa sobretudo com “uma Igreja anestesiada” pelo mundanismo, distante dos problemas das pessoas.
Às vezes com um típico humor portenho, Francisco demonstra estar ciente não só do que ocorre dentro do Vaticano, mas na fronteira sul da Espanha e nos bairros carentes de Roma. Diz que adoraria ir à China (“quando me convidarem”) e que, embora de vez em quando também dê seus “tropeços”, sua única revolução é a do Evangelho.
drama dos refugiados marcou-o fortemente (“aquele homem chorava e chorava em meu ombro, com o salva-vidas na mão, porque não tinha conseguido salvar uma menina de quatro anos”), assim como as visitas às mulheres escravizadas pelas máfias da prostituição na Itália. Ainda não se sabe se será Papa até o fim da vida ou se optará pelo caminho de Bento XVI. Admite que, às vezes, sentiu-se usado por seus compatriotas argentinos.
Pergunta. Santidade, o que resta, depois de quase quatro anos no Vaticano, daquele padre das ruas, que chegou de Buenos Aires a Roma com a passagem de volta no bolso?
Resposta. Que continua sendo das ruas. Porque assim posso sair na rua para cumprimentar as pessoas nas audiências, ou quando viajo... Minha personalidade não mudou. Não estou dizendo que me propus a isso: foi espontâneo. Não, aqui não é preciso mudar. Mudar é artificial. Mudar aos 76 anos é se maquiar. Não posso fazer tudo o que quero lá fora, mas a alma das ruas permanece, e vocês a veem.
P. Nos últimos dias de pontificado, Bento XVI disse sobre seu último período à frente da Igreja: “As águas desciam agitadas, e Deus parecia estar dormindo”. Também sentiu essa solidão? A cúpula da Igreja estava dormindo em relação aos novos e antigos problemas das pessoas?
R. Eu, dentro da hierarquia da Igreja, ou dos agentes pastorais da Igreja (bispos, padres, freiras, leigos...), tenho mais medo dos anestesiados do que dos que estão dormindo. Daqueles que se anestesiam com o mundanismo. Então, negociam com o mundanismo. E isso me preocupa... Que... Sim, tudo está quieto, está tranquilo, se as coisas estão bem... ordem demais. Quando se lê os Atos dos Apóstolos, as Epístolas de São Paulo, lá havia confusão, havia problemas, as pessoas se movimentavam. Havia movimento e havia contato com as pessoas. O anestesiado não tem contato com as pessoas. Defende-se da realidade. Está anestesiado. E hoje em dia existem tantas maneiras para se anestesiar da vida cotidiana, não? E, talvez, a doença mais perigosa que um pastor possa ter venha da anestesia, e é o clericalismo. Eu aqui, e as pessoas lá. Você é o pastor dessas pessoas! Se não cuidar dessas pessoas e deixar de cuidar dessas pessoas, feche a porta e se aposente.
P. E há uma parte da Igreja anestesiada?
R. Todos temos perigos. É um perigo, é uma tentação séria. É mais fácil estar anestesiado.
Uma imagem do Papa durante a entrevista. L'OSSERVATORE ROMANO
P. Vive-se melhor, mais confortável.
R. Por isso, mais do que com os que estão dormindo, essa é a anestesia que o espírito de mundanismo proporciona. Do mundanismo espiritual. Nesse sentido, chama minha atenção que Jesus, na Última Ceia, quando faz essa longa oração ao Pai pelos discípulos, não pede a eles “observem o quinto mandamento, que não matem; o sétimo mandamento, que não roubem”. Não. Tomem cuidado com o mundanismo; tomem cuidado contra o mundo. O que anestesia é o espírito do mundo. E, então, o pastor se torna um funcionário público. E isso é o clericalismo, que, na minha opinião, é o pior mal que a Igreja pode ter hoje.
P. Os problemas enfrentados por Bento XVI no final de seu pontificado e que estavam naquela caixa branca que ele lhe entregou em Castel Gandolfo. O que havia lá dentro?
R. A normalidade da vida da Igreja: santos e pecadores, decentes e corruptos. Estava tudo ali! Havia gente que tinha sido interrogada e está limpa, trabalhadores... Porque aqui na Cúria há santos, viu? Há santos. Gosto de dizer isso. Porque fala-se com facilidade da corrupção da Cúria. Há pessoas corruptas na Cúria. Mas também muitos santos. Homens que passaram a vida inteira servindo às pessoas de maneira anônima, atrás de uma mesa, em um diálogo ou em um escritório para conseguir... Ou seja, dentro dela existem santos e pecadores. Naquele dia, o que mais me impressionou foi a memória do santo Bento. Que me disse: “Olha, aqui estão as atas, na caixa”. Um envelope com o dobro deste tamanho: “Aqui está a sentença, de todos os personagens.” E aqui, “fulano, tanto”. Tudo de cor! Uma memória extraordinária. E a conserva, a conserva.
P. Ele se encontra bem de saúde?
R. Daqui para cima, perfeito. O problema são as pernas. Caminha com ajuda. Tem uma memória de elefante, até as nuances. Então digo uma coisa, e me responde: “Não foi naquele ano, foi no ano tal.”
Uma visita do papa Francisco a Bento XVI em Castel Gandolfo em 23 de março de 2013.  AP
P. Quais são suas maiores preocupações com relação à Igreja e, em geral, com a situação mundial?
R. Com relação à Igreja, eu diria que a Igreja não deixe de estar próxima das pessoas. Que procure sempre estar perto. Uma Igreja que não é próxima não é Igreja. É uma boa ONG. Ou uma boa organização piedosa de pessoas boas que fazem beneficência, se reúnem para tomar chá e fazer caridade. Mas o que identifica a Igreja é a proximidade: sermos irmãos próximos. Porque a Igreja somos todos. Então, o problema que sempre existe na Igreja é que não haja proximidade. E proximidade significa tocar, tocar no próximo a carne de Cristo. É curioso: quando Cristo nos diz o protocolo com o qual seremos julgados, que é o capítulo 25 de Mateus, é sempre tocar o próximo. “Tive fome, estive preso, estive doente...”. Sempre a proximidade para ver a necessidade do próximo. Que não é só a beneficência. É muito mais do que isso. Depois, com relação ao mundo, minha preocupação é a guerra. Estamos na Terceira Guerra Mundial em pedacinhos. E, ultimamente, já se fala de uma possível guerra nuclear como se fosse um jogo de cartas. E isso é o que mais me preocupa. Do mundo, preocupa-me a desproporção econômica: que um pequeno grupo da humanidade tenha mais de 80% da riqueza, com o que isso significa na economia líquida, onde no centro do sistema econômico está o deus dinheiro e não o homem e a mulher, o humano! Assim, cria-se essa cultura de que tudo é descartável.
P. Santidade, com relação aos problemas do mundo que o senhor mencionava, exatamente neste momento Donald Trump está tomando posse como presidente dos EUA. E o mundo vive uma tensão por esse fato. Qual a sua consideração sobre isso?
R. Veremos o que acontece. Mas me assustar ou me alegrar com o que possa acontecer, nisso acho que podemos cair numa grande imprudência – sermos profetas ou de calamidades ou de bem-estares que não vão acontecer, nem uma coisa nem outra. Veremos o que ele faz e, a partir daí, avaliaremos. Sempre o concreto. O cristianismo, ou é concreto ou não é cristianismo. É curioso: a primeira heresia da Igreja foi logo depois da morte de Cristo. A heresia dos gnósticos, que o apóstolo João condena. E era a religiosidade spray, como a chamo, do não concreto. Sim, eu, sim, a espiritualidade, a lei... mas tudo spray. Não, não. Coisas concretas. E do que é concreto tiramos as consequências. Nós perdemos muito o senso do concreto. Outro dia, um pensador me dizia que este mundo está tão desorganizado que falta um ponto fixo. E é justamente o concreto que nos dá pontos fixos. O que você fez, o que disse, como age. Por isso eu, diante disso, espero e vejo.
P. Não se preocupa com o que escutou até agora?
O papa bebe erva mate durante uma audiência em Roma, em 31 de agosto de 2016.  EL PAÍS
R. Eu espero. Deus me esperou por tanto tempo, com todos os meus pecados...
P. Para os setores mais tradicionais, qualquer mudança, mesmo que seja apenas na linguagem, é uma traição. Para o outro extremo, nada será suficiente. Como o senhor disse, tudo já estava escrito na essência do Evangelho. Trata-se, então, de uma revolução da normalidade?
R. Eu procuro, não sei se consigo, fazer o que manda o Evangelho. Isso é o que busco. Sou pecador e nem sempre consigo isso, mas é o que procuro. É curioso: a história da Igreja não foi levada adiante por teólogos, padres, freiras nem bispos... sim, em parte sim, mas os verdadeiros protagonistas da história da Igreja são os santos. Ou seja, aqueles homens e mulheres que deram a vida para que o Evangelho fosse concreto. São eles que nos salvaram: os santos. Às vezes, pensamos nos santos como uma freirinha que fica olhando para cima com os olhos revirados. Os santos são os concretos do Evangelho na vida diária! E a teologia que podemos obter a partir da vida de um santo é muito grande. Evidentemente, os teólogos, os pastores, todos são necessários. E isso é parte da Igreja. Mas é preciso buscar o Evangelho. E quem são os melhores portadores do Evangelho? Os santos. Você utilizou a palavra “revolução”. Isso é revolução! Eu não sou santo. Não estou fazendo nenhuma revolução. Estou tentando que o Evangelho siga adiante. Mas de maneira imperfeita, porque também tenho meus tropeços às vezes.
P. Não acha que, entre muitos católicos, possa existir algo como a síndrome do irmão do filho pródigo, que consideram que se presta mais atenção aos que se foram do que aos que permaneceram dentro, observando os mandamentos da Igreja? Lembro-me de que, numa das suas viagens, um jornalista alemão lhe perguntou por que não falava nunca da classe média, daqueles que pagam impostos...
R. Aqui há duas perguntas. A síndrome do filho mais velho: é verdade que os que estão cômodos numa estrutura eclesiástica que não os compromete muito ou que têm posturas que os protegem do contato se sentirão incômodos com qualquer mudança, com qualquer proposta do Evangelho. Gosto de pensar muito no dono do hotel aonde o samaritano levou aquele homem que havia sido surrado pelos ladrões, roubado pelo caminho. O dono do hotel sabia da história, que foi contada pelo samaritano: havia passado um padre, olhou, estava atrasado para a missa e o deixou jogado no caminho, não queria se manchar com o sangue, porque isso o impedia de celebrar segundo a lei. Passou o advogado, o levita, e viu e disse: “Ai, não vou me meter aqui, perderei muito tempo, amanhã no tribunal serei testemunha e... não, não, melhor não me meter.” Parecia nascido em Buenos Aires, e se desviou assim, que é o lema dos portenhos: “Não se meta”. E passa outro, que não é judeu, que é um pagão, que é um pecador, considerado o pior de todos: se comove e levanta o homem. O estupor que o dono do hotel teve é enorme, porque viu algo incomum. Mas a novidade do Evangelho cria estupor porque é essencialmente escandalosa. São Paulo nos fala do escândalo da cruz, do escândalo do Filho de Deus feito homem. O escândalo bom, porque também Jesus condena o escândalo contra as crianças. Mas a essência evangélica é escandalosa para os parâmetros da época. Para qualquer parâmetro mundano, a essência é escandalosa. Portanto, a síndrome do filho mais velho é, em certa medida, a síndrome daquele que já está acomodado na Igreja, do que de alguma maneira tem tudo claro, tudo fixo sobre o que é preciso fazer, e que não me venham predicar coisas estranhas. Assim se explicam nossos mártires, que deram sua vida por predicar algo que incomodava. Essa é a primeira pergunta. A segunda: eu não quis responder ao jornalista alemão, mas em vez disso lhe disse: “Vou pensar, você tem um pouco de razão”. Falo continuamente da classe média sem mencioná-la. Uso uma palavra de Malègue, um romancista francês: ele fala da “classe média da santidade”. [Joseph Malègue foi o autor de Pedras Negras: As Classes Médias da Salvação e de Augustine.] Estou falando continuamente dos pais de família, dos avós, dos enfermeiros, das enfermeiras, das pessoas que vivem para os demais, que criam os filhos, que trabalham... A santidade dessas pessoas é enorme! São elas também que levam a Igreja adiante: as pessoas que vivem de seu trabalho com dignidade, que criam seus filhos, que enterram seus mortos, que cuidam dos avós, que não os trancam em lares de idosos, essa é nossa santa classe média. Do ponto de vista econômico, hoje a classe média tende a desaparecer, obviamente, cada vez mais, e pode correr o risco de se refugiar nas cavernas ideológicas. Mas essa “classe média da santidade”: o pai, a mãe de família, que celebram sua família, com seus pecados e suas virtudes, o avô e a avó. A família. No centro. Essa é a “classe média da santidade”. Malègue teve uma grande intuição nesse ponto, chegando a dizer uma frase que pode impressionar. Num de seus romances, Augustine, quando num diálogo um ateu lhe diz: “Mas o senhor acredita que Cristo é Deus?”, e lhe apresenta o problema: acha que o Nazareno é Deus? “Para mim, não é um problema”, responde o protagonista do romance. “O problema para mim seria se Deus não se fizesse Cristo”. Essa é a “classe média da santidade”.
P. Santidade, o senhor falava de cavernas ideológicas. A que se refere? O que lhe preocupa sobre esse aspecto?
R. Não é que me preocupe. Eu aponto a realidade. Estamos sempre mais cômodos no sistema ideológico que foi elaborado, porque é abstrato.
P. Isso se exacerbou, se potencializou nos últimos anos?
R. Sempre houve, sempre. Não diria que se exacerbou porque há muita desilusão com isso também. Creio que havia mais no tempo anterior à Segunda Guerra Mundial. Digo. Não pensei muito. Estou repassando um pouco... Sempre, no restaurante da vida, nos oferecem pratos de ideologia. Sempre. Você pode se refugiar nisso. São refúgios, que o impedem de tocar a realidade.
P. Santo Padre, durante estes anos, nas viagens, vi o senhor se emocionar e emocionar muitos dos que escutavam suas palavras... Por exemplo, em três ocasiões muito especiais: em Lampedusa, quando se perguntou se havíamos chorado com as mulheres que perdem seus filhos no mar; na Sardenha, quando falou sobre o desemprego e as vítimas do sistema financeiro mundial; nas Filipinas, com o drama das crianças exploradas. Duas perguntas: o que a Igreja pode fazer, o que está sendo feito e como os governos estão agindo diante disso?
R. O símbolo que propus no novo órgão de Migrações – no novo esquema, o Departamento de Migrações e Refugiados, que preparei diretamente com dois secretários – é um salva-vidas laranja, como os que todos conhecemos. Numa audiência geral, veio parte dos que trabalham no salvamento dos refugiados do Mediterrâneo. Eu os cumprimentava, e este homem segurou esse objeto e começou a chorar, apoiou-se no meu ombro e chorava, chorava: “Não consegui, não cheguei, não consegui.” E, quando se acalmou um pouco, me disse: “A menina não tinha mais de quatro anos. Entrego-lhe isto”. E isso é um símbolo da tragédia que estamos vivendo. Sim.
P. Os governos estão respondendo à altura?
R. Cada um faz o que pode ou o que quer. É um juízo difícil de fazer. Mas, obviamente, o fato de o Mediterrâneo ter se transformado num cemitério deve nos fazer pensar.
P. Queria lhe perguntar se sente que sua mensagem, sua viagem às periferias, aos que sofrem e estão perdidos, é acolhida, acompanhada por uma estrutura talvez acostumada a caminhar em outro ritmo. O senhor sente que avança num ritmo e a Igreja em outro? Sente-se acompanhado?
R. Acho que não é assim e, graças a Deus, a resposta em geral é boa. É muito boa. Quando pedi às paróquias de Roma e aos colégios, houve quem dissesse: “Isso foi um fracasso”. Mentira! Não foi um fracasso! Uma alta porcentagem das paróquias de Roma, quando não tinham uma casa grande à disposição ou quando a casa paroquial era pequena, sei lá, pois os fiéis alugam um apartamento para uma família imigrante... Nos colégios de freiras, às vezes sobrava lugar, arrumaram um espaço para as famílias migrantes... A resposta é maior do que se acredita, não é divulgada. O Vaticano tem duas paróquias, e cada paróquia tem uma família imigrante. Um apartamento do Vaticano para uma família, outro para outra. A resposta é contínua. Não 100%. Qual porcentagem eu não sei. Mas eu diria que 50% acho que sim. Depois, o problema da integração. Cada imigrante é um problema muito sério. Eles fogem de seu país. Por fome ou guerra. Então, a solução deve ser buscada ali. Por fome ou por guerra, são explorados. Penso na África: o símbolo da exploração. Inclusive, ao dar independência, algum país lhes deu independência do solo para cima, reservando-se o subsolo. Ou seja: são sempre usados e escravizados... Então, a política de acolhida tem várias etapas. Há uma acolhida de emergência: você tem que receber [o migrante] e tem que recebê-lo porque, do contrário, ele se afoga. Nisso a Itália e a Grécia estão dando o exemplo, um exemplo muito grande. A Itália, inclusive agora, com os problemas que tem com o terremoto e todas essas coisas, continua se preocupando com eles. Recebendo-os. Claro: eles chegam à Itália porque é o país mais próximo. Creio que na Espanha chegam de Ceuta também. [Sim.] Mas, geralmente, a maioria não quer ficar na Espanha, quer ir para o norte, porque buscam mais possibilidades.
P. Mas, na Espanha, há um muro que separa Ceuta e Melilla de Marrocos. Não podem passar.
R. Sim, sim, eu sei. E querem ir para o norte. Então, o problema é: recebê-los, sim, mais ou menos por alguns meses, alojá-los. Mas é preciso começar um processo de integração. Acolher e integrar. E o modelo mundial que está à frente é a Suécia. A Suécia tem nove milhões de habitantes, dos quais 890.000 são “novos suecos”, filhos de migrantes ou migrantes com cidadania sueca. A ministra de Relações Exteriores – acho que era, a que foi se despedir de mim – uma moça jovem, era filha de mãe sueca e pai do Gabão. Migrantes. Integrados. O problema é integrar. Por outro lado, quando não há integração, ficam em guetos, e não culpo ninguém, mas de fato existem guetos. Que talvez naquele momento não perceberam que havia. Mas os meninos que fizeram o desastre no aeroporto de Zaventem [em Bruxelas] eram belgas, nascidos na Bélgica. Mas moravam num bairro fechado de imigrantes. Ou seja, é fundamental o segundo passo: a integração. Qual é o grande problema da Suécia agora? Não é que não venham imigrantes. Não estamos dando conta nos programas de integração! Eles se perguntam o que mais podem fazer para que as pessoas venham! É impressionante. Para mim, é um modelo mundial. E isso não é novo. Eu disse logo de cara, depois de Lampedusa... Eu conhecia o caso da Suécia pelos argentinos, uruguaios e chilenos que na época da ditadura militar foram acolhidos ali, pois tenho amigos lá, e refugiados. Claro, depois que você chega à Suécia e lhe oferecem organização médica, documentos, dão autorização para morar... E você já tem uma casa, e na semana seguinte tem uma escola para aprender o idioma, um pouquinho de trabalho... e vai para frente. Nisso San Egidio, aqui na Itália, é um modelo. Os que vieram comigo no avião de Lesbos, e depois vieram outros nove... O Vaticano se encarregou de 22, e estamos cuidando deles. E eles lentamente vão se tornando independentes. No segundo dia, os meninos já iam ao colégio. No segundo dia! E os pais lentamente encontram seu lugar, com um apartamento, um trabalho aqui, meio trabalho ali, professores para o idioma... San Egidio tem essa mesma postura. Ou seja, o problema então é: salvamento urgente, sim, para todos. Segundo: receber, acolher da melhor forma possível. Depois integrar, integrar. Integrar.
Visita de Barack Obama a Francisco em Roma em 27 de março de 2014.  VATICAN POOL
P. Santidade, já faz 50 anos de quase tudo. Do Concílio Vaticano II, da viagem de Paulo VI e do abraço com o patriarca Atenágoras na Terra Santa. Há quem sustente que, para entendê-lo, convém conhecer Paulo VI. Ele foi até certo ponto o papa incompreendido. O senhor se sente também um pouco assim, um Papa incômodo?
R. Não. Não. Acredito que, por meus pecados, deveria ser mais incompreendido. O mártir da incompreensão foi Paulo VI. A Evangelii Gaudium, que é o marco da pastoralidade que quero dar à Igreja agora, é uma atualização da Evangelii Nuntiandi de Paulo VI. É um homem que se antecipou à história. E sofreu, sofreu muito. Foi um mártir. E muitas coisas ele não pôde fazer, porque, como era realista, sabia que não podia e sofria, mas oferecia esse sofrimento. E o que pôde fazer ele fez. E é o que Paulo VI fez de melhor: semear. Semeou coisas que depois a história foi recolhendo. A Evangelii Gaudium é uma mistura da Evangelii Nuntiandi e do documento de Aparecida. Coisas que foram sendo trabalhadas de baixo para cima. A Evangelii Nuntiandi é o melhor documento pastoral pós-conciliar e que não perdeu a atualidade. Não me sinto incompreendido. Sinto-me acompanhado, e acompanhado por todo tipo de gente, jovens, velhos… Sim, um ou outro por aí não está de acordo, e tem o direito, porque se eu me sentisse mal por alguém não estar de acordo haveria em minha atitude um germe de ditador. Eles têm o direito de não estarem de acordo. Têm direito de pensarem que o caminho é perigoso, que pode trazer maus resultados, que… eles têm o direito. Mas desde que dialoguem, não que atirem a pedra e escondam a mão, isso não. A isso nenhuma pessoa humana tem o direito. Atirar a pedra e esconder a mão não é humano, isso é delinquência. Todos têm o direito de discutir, e quem dera discutíssemos mais, porque isso nos burila, nos irmana. A discussão irmana muito. A discussão com bom sangue, não com a calúnia e tudo isso…
P. Incômodo com o poder o senhor também não sente?
R. É que o poder não sou eu quem tenho. O poder é compartilhado. O poder é quando se tomam as decisões pensadas, dialogadas, rezadas; a oração me ajuda muito, e me sustenta muito. Não me incomoda o poder. Incomodam-me certos protocolos, mas é porque eu sou assim, da rua.
P. O senhor está há 25 anos sem ver televisão e, pelo que entendo, o senhor nunca foi muito fã de jornalistas, mas o sistema de comunicação do Vaticano foi totalmente reinventado, profissionalizado e elevado à categoria de dicastério. Os meios de comunicação são tão importantes assim para o Papa? Existe uma ameaça à liberdade de imprensa? E as redes sociais, podem causar um prejuízo à liberdade do indivíduo?
R. Eu não assisto televisão. Simplesmente senti que Deus me pediu isso, no dia 16 de julho de 1990; fiz essa promessa e não sinto falta. Só fui ao centro de televisão que ficava ao lado da arquidiocese para ver um ou dois filmes que me interessavam, que poderiam servir para a mensagem. E veja que eu gostava muito de cinema e tinha estudado bastante o cinema, especialmente o italiano do pós-guerra, e o polonês Wajda, Kurosawa, e alguns franceses. Mas não ver televisão não me impede de me comunicar. Não assistir televisão foi uma escolha pessoal, nada mais. Mas a comunicação é divina. Deus se comunica. Deus comunicou-se conosco por meio da história. Deus não ficou isolado. É um Deus que se comunica, e falou conosco, nos acompanhou, nos desafiou e nos fez mudar de rumo, e continua a nos acompanhar. Não se pode compreender a teologia católica sem a comunicação de Deus. Deus não está estático lá e olha para ver como os homens se divertem ou como se destroem. Deus se envolveu, e o fez comunicando-se com a palavra e com sua carne. Ou seja, eu começo daí. Tenho um pouco de medo quando os meios de comunicação não podem se expressar com a ética que lhes é própria. Por exemplo, existem maneiras de se comunicar que não ajudam, que atrapalham a unidade. Dou um exemplo simples. Uma família que está jantando e as pessoas não se falam, ou assistem televisão, ou as crianças estão com seus celulares enviando mensagens a outras pessoas que estão fora. Quando a comunicação perde o carnal, o humano, e se torna líquida, é perigosa. Que se comunique em família e que as pessoas se comuniquem, e também da outra maneira, é muito importante. O mundo virtual da comunicação é muito rico, mas você corre o risco se não vive uma comunicação humana, normal, de tocar! O concreto da comunicação é o que fará que o virtual da comunicação siga pelo bom caminho. Ou seja, o concreto é inegociável em tudo. Não somos anjos, somos pessoas concretas. A comunicação é fundamental e deve seguir em frente. Há perigos como esse em todas as coisas. É preciso ajustá-los, mas a comunicação é divina. E há defeitos. Eu falei sobre os pecados da comunicação numa conferência na ADEPA, em Buenos Aires, a associação que reúne os editores da Argentina. E os presidentes me convidaram para um jantar em que tive de fazer essa conferência. Lá eu apontei os pecados da comunicação e disse a eles: não caiam nisso, porque o que os senhores têm em suas mãos é um grande tesouro. Hoje em dia comunicar é divino, sempre foi divino porque Deus se comunica, e é humano porque Deus se comunicou humanamente. Portanto, funcionalmente há um dicastério, obviamente, para dar um encaminhamento a tudo isso. Mas o dicastério é uma coisa funcional. Não é porque hoje é importante se comunicar, não. Porque a comunicação é essencial para a pessoa humana, porque também é essencial a Deus!
P. O maquinário diplomático do Vaticano funciona a todo vapor. Tanto Barack Obama quanto Raúl Castro agradeceram publicamente o seu trabalho na aproximação. No entanto, existem outros casos, como a Venezuela, Colômbia e o Oriente Médio, que ainda estão bloqueados. No primeiro caso, inclusive, as partes criticam a mediação. O senhor teme que a imagem do Vaticano sofra? Quais são suas instruções nesses casos?
R. Eu peço ao Senhor a graça de não tomar nenhuma medida pela imagem. Mas pela honestidade, pelo serviço, esses são os critérios. Não acredito que seja bom maquiar um pouco. Às vezes podemos cometer erros, a imagem se ressentirá, bom, isso é uma consequência, mas foi feito com boa vontade. A história julgará as coisas. E depois há um princípio que é claro para mim, que é o que tem de prevalecer em toda a ação pastoral, mas também na diplomacia do Vaticano: mediadores, não intermediários. Em outras palavras, fazer pontes e não muros. Qual é a diferença entre o mediador e o intermediário? O intermediário é aquele que tem, por exemplo, um escritório de compra e venda de imóveis, procura quem quer vender uma casa e quem quer comprar uma casa, eles se põem de acordo, ele cobra a comissão, presta um bom serviço, mas sempre ganha algo, e tem direito porque é seu trabalho. O mediador é aquele que se coloca a serviço das partes e faz com que as partes ganhem mesmo que ele perca. A diplomacia do Vaticano tem de ser mediadora, não intermediária. Se ao longo da história a diplomacia do Vaticano fez uma manobra ou uma reunião e encheu o bolso, então ela cometeu um pecado muito grave, gravíssimo. O mediador faz pontes, que não são para ele, são para que os outros caminhem. E não cobra pedágio. Faz a ponte e se vai. Para mim essa é a imagem da diplomacia vaticana. Mediadores e não intermediários. Fazedores de pontes.
P. Essa diplomacia vaticana pode ser estendida à China em breve?
R. De fato, existe uma comissão que está trabalhando há anos com a China e que se reúne a cada três meses, uma vez aqui e outra em Pequim. E há muito diálogo com a China. A China tem sempre aquela aura de mistério que é fascinante. Há dois ou três meses, com a exposição do Museu do Vaticano em Pequim, estavam felizes. E no próximo ano eles virão aqui no Vaticano com suas coisas, seus museus.
P. E o Santo Padre, irá em breve à China?
R. Irei quando me convidarem. Eles sabem. Além disso, na China as Igrejas estão cheias. Pode-se praticar a religião na China.
P. Tanto na Europa quanto na América, as consequências de uma crise que não acaba, o aumento da desigualdade e a ausência de lideranças fortes estão dando lugar a formações políticas que estão captando o mal-estar dos cidadãos. Algumas delas – que costumam ser chamadas de antissistema ou populistas – aproveitam o medo das pessoas de um futuro incerto para construírem uma mensagem de xenofobia, de ódio em relação ao estrangeiro. O caso de Trump é o que mais chama a atenção, mas também há os casos da Áustria e até da Suíça. O senhor está preocupado com esse fenômeno?
R. É o que chamam de populismo. Essa é uma palavra enganosa, porque na América Latina o populismo tem outro significado. Lá significa o protagonismo dos povos, por exemplo, os movimentos populares. Organizam-se entre eles... é outra coisa. Quando ouvia falar em populismo aqui não entendia muito, ficava perdido, até que percebi que eram significados diferentes dependendo dos lugares. Claro, as crises provocam medos, alertas. Para mim, o mais típico exemplo dos populismos europeus é o 1933 alemão. Depois de [Paul von] Hindenburg, a crise de 1930, a Alemanha estava destroçada, tentava se levantar, buscava sua identidade, estava à procura de um líder, de alguém que devolvesse sua identidade, e havia um rapazinho chamado Adolf Hitler que disse “eu posso, eu posso”. E toda a Alemanha votou em Hitler. Hitler não roubou o poder, foi eleito por seu povo, e depois destruiu seu povo. Esse é o perigo. Em momentos de crise, o discernimento não funciona, e para mim é uma referência contínua. Busquemos um salvador que nos devolva a identidade e defendamo-nos com muros, com arames farpados, com qualquer coisa, dos outros povos que podem nos tirar a identidade. E isso é muito grave. Por isso sempre procuro dizer: dialoguem entre vocês, dialoguem entre vocês. Mas o caso da Alemanha de 1933 é típico, um povo que estava naquela crise, que procurava sua identidade, e então apareceu esse líder carismático que prometeu dar-lhes uma identidade, e deu-lhes uma identidade distorcida e sabemos o que aconteceu. Onde não há diálogo... As fronteiras podem ser controladas? Sim, cada país tem o direito de controlar suas fronteiras, quem entra e quem sai, e os países que estão em perigo – de terrorismo ou coisas desse tipo – têm mais direito de controlar mais, mas nenhum país tem o direito de privar seus cidadãos do diálogo com os vizinhos.
P. O senhor observa na Europa de hoje, Santo Padre, sinais dessa Alemanha de 1933?
R. Não sou um técnico nisso, mas sobre a Europa de hoje remeto-me aos três discursos que fiz. Os de Estrasburgo e o terceiro quando do Prêmio Carlos Magno, que foi o único prêmio que aceitei porque insistiram muito por causa do momento que a Europa vivia, e aceitei como um serviço. Esses três discursos dizem o que penso sobre a Europa.
P. A corrupção é o grande pecado do nosso tempo?
R. É um grande pecado. Mas acredito que não devemos atribuir-nos a exclusividade na história. Sempre houve corrupção. Sempre. Aqui. Se alguém ler a história dos papas se depara com cada escândalo... Para me referir à minha casa, sem me meter na do vizinho. Tenho vários exemplos de países vizinhos onde houve corrupção na história, mas fico com os meus. Aqui houve corrupção. E pesada, hein. Basta pensar no papa Alexandre VI, nessa época, e em dona Lucrécia com seus “chazinhos” [envenenados].
P. O que lhe chega da Espanha? O que lhe chega sobre a recepção que há na Espanha da sua mensagem, sua missão, seu trabalho...?
R. Hoje, da Espanha, acabam de me chegar alguns polvorones e um turrón de Jijona (doces) que estão aí para oferecer aos rapazes.
P. Hahaha. A Espanha é um país onde o debate sobre o secularismo e a religiosidade está vivo, como o senhor sabe...
R. Está vivo, muito vivo...
P. O que o senhor pensa disso? O processo de secularismo pode acabar deixando a Igreja Católica numa situação marginal?
R. Diálogo. É o conselho que dou a qualquer país. Por favor, diálogo. Como irmãos, caso se animem, ou pelo menos como pessoas civilizadas. Não se insultem. Não se condenem antes de dialogar. Se depois do diálogo quiserem se insultar, bom, mas pelo menos dialogar. Se depois do diálogo quiserem se condenar, bom..., mas primeiro o diálogo. Hoje, com o desenvolvimento humano que existe, não se pode conceber uma política sem diálogo. E isso vale para a Espanha e para todos. Então, se você me pedir um conselho para os espanhóis, dialoguem. Se há problemas, dialoguem primeiro.
P. Na América Latina, evidentemente, suas palavras e decisões são acompanhadas com especial atenção. Como vê o continente? Como vê sua terra?
R. O problema é que a América Latina está sofrendo os efeitos – que ressaltei muito na Laudato Se – de um sistema econômico que tem no seu centro o deus dinheiro, e então [esses países] caem em políticas de fortíssima exclusão. E então se sofre muito. E evidentemente hoje em dia a América Latina está sofrendo um forte embate de liberalismo econômico forte, desse que eu condeno na Evangeli Gaudium quando digo que “esta economia mata”. Mata de fome, mata de falta de cultura. A emigração não é só da África para Lampedusa ou para Lesbos. A emigração é também do Panamá para a fronteira do México com os Estados Unidos. As pessoas emigram procurando. Porque os sistemas liberais não dão possibilidades de trabalho e favorecem delinquências. Na América Latina há o problema dos cartéis da droga, que existem, sim, e essa droga é consumida nos Estados Unidos e na Europa. Fabricam-na para cá, para os ricos, e perdem a vida nisso. E há os que se prestam a isso. Na nossa pátria temos uma palavra para qualificá-los: os cipayos [mercenários]. É uma palavra clássica, literária, que está em nosso poema nacional. O cipayo é aquele que vende a pátria à potência estrangeira que possa lhe dar mais benefício. E na nossa história argentina, por exemplo, sempre há algum político cipayo. Ou alguma postura política cipaya. Sempre houve na história. Então a América Latina precisa se rearmar com formações de políticos que deem a força dos povos à América Latina. Para mim, o exemplo maior é o do Paraguai do pós-guerra. Perde a guerra contra a Tríplice Aliança, e o país fica praticamente nas mãos das mulheres. E a mulher paraguaia sente que precisa erguer o país, defender a fé, defender sua cultura e defender sua língua, e conseguiu. A mulher paraguaia. A mulher paraguaia não é cipaya, defendeu o seu, à custa do que fosse, mas defendeu, e repovoou o país. Para mim, é a mulher mais gloriosa da América. Aí você tem um caso de uma atitude que não se entregou. Há heroísmo. Em Buenos Aires há um bairro, à beira do rio da Prata, cujas ruas têm nomes de mulheres patriotas, que lutaram pela independência, lutaram pela pátria. A mulher tem mais senso... Talvez eu exagere. Bom, se exagero que me corrijam. Mas tem mais senso de defender a pátria, porque é mãe. É menos cipaya. Tem menos perigo de cair no cipayismo.
P. Por isso dói tanto a violência contra as mulheres, que é uma mancha na América Latina e em tantos lugares…
R. Em todos os lados. Na Europa… Na Itália, por exemplo, visitei organizações de resgate de meninas prostitutas que são exploradas por europeus. Alguém me dizia que foi trazida da Eslováquia no porta-malas de um automóvel para que pudessem passá-la [pelas fronteiras e controles policiais]. E lhe dizem: você precisa trazer tanto hoje, e se não trouxer isso, vai levar. Batem nelas… Em Roma? Em Roma. A situação dessas mulheres aqui – em Roma! – é de terror. Nessa casa que visitei havia uma a quem haviam cortado a orelha. Torturam-nas quando não reúnem dinheiro suficiente. E as mantêm retidas porque as assustam, dizem que vão matar os pais delas. Albanesas, nigerianas, inclusive italianas. Uma coisa muito linda é que essa associação se dedica a ir pelas ruas, as abordam e, em vez de lhes dizer “Quanto você cobra?”, “Quando você custa?”, lhes perguntam: “Quando você sofre?”. E as levam para uma colônia segura, a fim de que se recuperem. Visitei no ano passado uma dessas colônias com meninas recuperadas e havia dois homens, eram voluntários. E uma me disse: “Eu o encontrei”. Casou-se com o homem que a havia salvado e estavam querendo ter um filho. O usufruto da mulher é das coisas mais desastrosas que acontecem, também aqui, em Roma. A escravidão da mulher.
P. Não acha que, depois da tentativa fracassada da Teologia da Libertação, a Igreja perdeu muitas posições para outras confissões e inclusive seitas? A que se deve isso?
R. A teologia da liberação foi uma coisa positiva na América Latina. Foi condenada pelo Vaticano a parte que optou pela análise marxista da realidade. O cardeal Ratzinger fez duas instruções quando era prefeito da Doutrina da Fé. Uma, muito clara, sobre a análise marxista da realidade. E a segunda retomando aspectos positivos. A Teologia da Libertação teve aspectos positivos e também teve desvios, sobretudo na parte da análise marxista da realidade.
P. Suas relações com a Argentina. O Vaticano se tornou, de três anos para cá, um lugar de peregrinação para políticos de diversos partidos. O senhor se sente usado?
R. Ah, sim. Alguns me dizem: Tiramos uma foto de lembrança, e lhe prometo que vai ser para mim e que não vou publicá-la. E antes de sair pela porta já a publicaram [sorri]. Bom, se fica feliz de usá-la, o problema é dele. Diminui a qualidade dessa pessoa. Quem a usa tem pouca estatura. E o que vou fazer? O problema é dele, não meu. Vêm muitos argentinos à audiência geral. Na Argentina sempre houve muito turismo, mas agora passar por uma audiência geral do Papa é quase obrigatório [risos]. Depois há os que vêm para cá e que são amigos – vivi 76 anos na Argentina –, às vezes minha família, alguns sobrinhos. Mas usado, sim, tem gente que já me usou, usou fotos, como se eu tivesse dito coisas, e quando me perguntam sempre respondo: não é problema meu, não fiz declarações, se ele disse isso é problema dele. Mas não entro no jogo do uso. Ele lá com a sua consciência.
P. Um tema recorrente é o papel dos leigos e, sobretudo, das mulheres na Igreja. Seu desejo é de que tenham maiores cotas de influência e inclusive de decisão. Esses são seus desejos. Até onde acredita que pode chegar?
R. O papel da mulher não deve ser buscado tanto pela funcionalidade, porque assim vamos acabar transformando a mulher, ou o movimento da mulher na Igreja, num machismo de saia. Não. É muito mais importante que uma reivindicação funcional. O caminho funcional é bom. A subdiretora da sala de imprensa do Vaticano é uma mulher, a diretora dos museus vaticanos é uma mulher… Sim, o funcional está bem. Mas a mim o que me interessa é que a mulher nos dê seu pensamento, porque a Igreja é feminina, é “a” Igreja, não é “o” Igreja, e é “a” esposa de Jesus Cristo, e esse é o fundamento teologal da mulher. E quando me perguntam, sim, mas a mulher poderia ter mais… Mas o que era mais importante: o dia de Pentecostes, a Virgem ou os apóstolos? A Virgem. O funcional pode nos trair ao colocar a mulher no seu lugar – que é preciso colocá-la, sim, porque ainda falta muito, e trabalhar para que possa dar à Igreja a originalidade de seu ser e de seu pensamento.
P. Em algumas das suas viagens, escutei como se dirigia aos religiosos, tanto da Cúria Romana quanto das hierarquias locais, ou inclusive a padres e freiras, para lhes pedir mais compromisso, mais proximidade, inclusive melhor humor. De que maneira acredita que recebem esses conselhos, esses puxões de orelha?
R. No que mais insisto é na vizinhança, na proximidade. E em geral é bem recebido. Sempre há grupos um pouco mais fundamentalistas, em todos os países, na Argentina há. São grupos pequenos, eu os respeito, são gente boa, que prefere viver assim a sua religião. Eu prego o que sinto que o Senhor me pede para pregar.
P. Na Europa, cada vez se veem mais padres e freiras procedentes do chamado Terceiro Mundo. A que se deve este fenômeno?
R. Há 150 anos, na América Latina, se viam cada vez mais padres e freiras europeus, e na África o mesmo, e na Ásia o mesmo. As Igrejas jovens foram crescendo. Na Europa o que acontece é que não há natalidade. Na Itália está abaixo de zero. A França é a que acredito estar mais à frente, por todas as leis de apoio à natalidade. Mas não há natalidade. O bem-estar italiano de alguns anos atrás cortou a natalidade por aqui. Preferimos sair de férias, temos um cachorrinho, um gatinho, não há natalidade, e se não houver natalidade não há vocações.
P. Em seus consistórios, o senhor criou cardeais dos cinco continentes. Como gostaria que fosse o conclave que escolherá o seu sucessor? Santidade, o senhor acredita que verá o próximo conclave?
R. Que seja católico. Um conclave católico que escolha o meu sucessor.
P. E o verá?
R. Isso eu não sei. Que Deus decida. Quando eu sentir que não posso mais, meu grande mestre Bento já me ensinou como se deve fazer. E se Deus me levar antes verei do outro lado. Espero que não do inferno… Mas que seja um consistório católico.
P. O senhor me parece muito contente de ser Papa.
R. O Senhor é bom e não me tirou o bom humor.