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sábado, 25 de dezembro de 2010

O problema do fundamentalismo Cristão




Carlos Antonio Fragoso Guimarães

A partir de uma entrevista divulgada pela revista Época com o pesquisador do cristianismo, professor e conferecista Bart D. Ehrman
Professor da Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos

“Há muitos erros na Bíblia e, mais importante que isso, há diferentes pontos de vista teológicos e isso precisa ser reconhecido”.

(Uma resposta aos fundamentalistas evangélicos)



O pesquisador americano Bart D. Ehrman nasceu e cresceu em meio a uma família e comunidade religiosas do chamado "Cinturão bíblico" no sul dos Estados Unidos, a região mais religiosa e conservadora aquele país. A características da igrejas desta região é a de tomar literalmente a Bíblia como sendo, de fato, uma obra divina, inquestionável, a ser "aceita" ao pé da letra. Quando adolescente, por conta deste meio, Ehrman havia se tornado um evangélico radical fervoroso. Isso o levou a querer se aprofundar no estudo da Bíblia. Diz ele, no prefácio de seu livro "Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?":

"Cheguei ao Seminário Teológico de Princento em agosto de 1978, saído da faculdade (de Teologia no Moody Bible Institute, de Chicago) e recém-casado. (...).
"Como um convicto cristão confiante na Bíblia, eu tinha certeza de que ela, em todas as suas palavras, tinha sido inspirada por Deus (...). Assim, eu fui para o Seminário Teológico de Princenton jovem e pobre, mas apaixonado, preparado para enfrentar todos aqueles liberais com sua visão aguada da Bíblia. Como bom 'cristão' evangélico, estava pronto para demolir quaisquer ataques à minha fé bíblica. Eu podia responder a qualquer aparente contradição e solucionar qualquer potencial discrepância da Palavra de Deus (...). Eu sabia que tinha muito a aprender, mas não iria aprender que meu texto sagrado tinha algum equívoco.
"Algumas coisas não aconteceram como planejado. O que realmente aprendi em Princeton me fez mudar de idéia sobre a Bíblia. Não mudei a minha maneira de pensar de boa vontade - fui derrotado gritando e esperneando (...) mas ao mesmo tempo pensei que, se tinha um verdadeiro compromisso com Deus, tambpém precisava ter um compromisso real com a verdade. E após um bom tempo ficou claro para mim que minha antiga visão da Bíblia como a revelação inequívoca de Deus era absolutamente equivocada. Minha escolha era me agarrar a uma visão que eu tinha descoberto estar errada ou seguir em frente até onde acreditava que a verdade estava me levando (...)".


De fato, Ehrman nada mais fez do que mergulhar nos estudos de competentes experts acadêmicos que, há quase duzentos anos, vêm efetuando um estudo histórico-crítico, baseado em documentação e análise de discurso, bem como em elementos históricos e arqueológicos de campo, sobre o que sabemos sobre os relatos bíblicos.

"Em todos os principais seminários protestates e católicos(dos EUA e Europa), a Bíblia é abordada segundo o método chamado de "histórico-crítico". É algo completamente diferente da interpretação 'devocional' da Bíblia aprendida na Igreja", diz Ehrman no primeiro capítulo de seu citado livro, e ele se pergunta por que tais estudos dificilmente são transmitidos pelos líderes das igrejas ao povo, em geral. Autores conhecidos, como Marvin Meyer, James H. Charlesworth, John Dominic Crossan, Elaine Pagels e outros são pesquisadores que seguem um caminho de divulgação desta área de pesquisas de forma semelhante à de Ehrman.


Atualmente professor de estudos religiosos na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill e conferencista disputado em várias universidades, sendo figura constante em documentários do History Channel, do National Geographic e do Discovery Channel, Ehrman já escreveu 21 artigos e livros sobre religião, incluindo Verdade e Ficção em O Código Da Vinci, sobre o best-seller de Dan Brown, e O que Jesus Disse? O que Jesus Não Disse?Quem mudou a Bíblia e por quê, que esteve meses entre mais vendidos na lista do jornal The New York Times. Agora, em Jesus, Interrupted (no Brasil, Quem foi Jesus? Quem Jesus não foi?, Ed. Ediouro), já lançado no Brasil, Ehrman tenta revelar as contradições da Bíblia, que provam, segundo ele, que o livro não foi enviado à humanidade por Deus, mas foi fruto de tradições orais postas no papel décadas apos os eventos ocorridos com o Jesus histórico, cujo núcleo da mensagem ainda visível é composto de um pacifismo fraternal universal e não exclusivista e uma apelo por uma mudança de percepção da realidade e de atitudes que levassem a uma sociedade de igualdade, proto-socialista (o Reino de Deus na Terra), mas cujos traços essenciais foram retocados, encobertos ou distorcidos por seguidores posteriores e escribas, o que só piorou ao longo dos séculos, por cópias manipuladas, em contextos históricos diversos, dos evangelhos e outros escritos constituintes do cânone que formaram o Novo Testamento, e que, assim, acabaram por perder muito de sua historicidade.

As divulgações destas pesquisas por Ehrman e outros autores, como os acima citados, têm atraído a reação esperada - e por vezes violenta - de evangélicos ultra-conservadores. Logicamente, eles repetem um comportamento que existe desde os primeiros séculos do cristianismo: tentam diminuir o incômodo da dissonância congnitiva de terem seus pontos de vista, por eles considerados os únicos verdadeiros, questionado pelas evidências, acusando essas demonstrações de serem obra do demônio - no final, o curinga irreal e de pouco valor que eles usam para tudo que não conseguem argumentativamente ou por meios de provas, refutar ou explicar.

Mesmo na internet é possível ver a reação de fundamentalistas brasileiros que esperneiam contra livros como "Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?", ou contra revistas, como no caso da revista Galeleu, que touxe uma reportagem de capa sobre as informações do livro "O que Jesus disse? O que Jesus não disse", de Ehrman junto com uma entrevista com ele, em 2006. Ainda assim, a caravana passa enquanto os cães ladram, trazendo informações úteis que, em muitos casos, mais aumentam o fascínio sobre o Jesus de Nazaré histórico e reduzem a nocividade de certas seitas conservadoras atuais, muitas delas verdadeiros comércios da fé mediante promessas de ganhos bem pouco espirituais e espetáculos midiáticos de gosto duvidoso, apresentados pelos novos "fariseus".

Vejamos trechos de uma entrevista dada por Bart D. Ehrman e publicadas na revista Época:

De um tempo para cá temos visto um crescimento do número de títulos com críticas às religiões. O que está motivando os leitores?

Bart Ehrman – Há uma reação contra a direita conservadora do mundo religioso. Aqui nos Estados Unidos há vários líderes desse tipo (televangélicos poderosos) que tiveram muita atenção da mídia por muito tempo, e as pessoas que estão do lado esquerdo deste espectro começaram a se incomodar. Muitos desses livros escritos por essas pessoas chamadas de “neo-ateístas” são uma representação deste movimento.

Alguns dos principais representantes do “neo-ateísmo” são Sam Harris e Richard Dawkins. Em um artigo recente da revista Time, o senhor reconheceu que compartilha leitores com eles. Mas o senhor se considera parte deste movimento?

Bart Ehrman – Não me considero um ateu e não acho que estou fazendo a mesma coisa que esses autores. Eles têm feito coisas boas, mas estão atacando a religião sem conhecer muito. Quando eu escrevo, faço isso como alguém que já esteve profundamente envolvido com a Cristandade, mas que agora a rejeitou tal como se apresenta. Por isso, a minha perspectiva é completamente diferente.

O que fez o senhor passar de um fiel cristão a um “agnóstico feliz”?

Bart Ehrman – Fui criado na Igreja Protestante e fui um cristão muito ativo por vários anos. Mas eu deixei a cristandade não por conta dos meus estudos históricos sobre a Bíblia, mas por não conseguir mais acreditar que poderia haver um deus no comando deste mundo cheio de dor e sofrimento.

Qual é o motivo de o livro se chamar Jesus, Interrupted [em tradução livre: Jesus, interrompido. Na versão brasileira: "Quem Jesus foi? quem Jesus não foi?"] ? Quando e como ele foi interrompido?

Bart Ehrman – O título significa que há inúmeras vozes diferentes falando no Novo Testamento. São autores diferentes, que possuem pontos de vista diferentes e que, muitas vezes, são conflitantes. Com tantas vozes assim falando no mesmo livro, muitas vezes é impossível escutar a voz do Jesus histórico, porque ele foi interrompido por outras pessoas.

E é possível definir qual é a maior contradição da Bíblia?

Bart Ehrman – São muitas discrepâncias, mas é possível destacar duas. O apóstolo Paulo, por exemplo, acha que a pessoa chega a Deus apenas pela fé, e não pelo que faz. No capítulo 24 de Mateus, no entanto, nós lemos que boas ações levam ao reino dos céus. Essas duas visões são excludentes em um assunto determinante, que é a salvação. Também há visões diferentes sobre quem era Jesus. No evangelho de João, Jesus é Deus, mas nos textos atribuídos a Marcos, Mateus e Lucas não há nada sobre isso. No evangelho de Mateus fica claro que ele acredita que Jesus é um ser humano, e que é o Messias. A Igreja acabou juntando essas duas visões, de que ele é humano e divino, e criou um conceito que não está escrito nem em João e nem em Mateus.

O senhor acha que essas discrepâncias fazem da Bíblia uma história falsa?

Bart Ehrman – Eu diria que os diferentes autores da Bíblia tem versões diferentes da história e por isso é errado tentar fazer com que eles digam a mesma coisa. Há muitos erros na Bíblia e, mais importante que isso, há diferentes pontos de vista teológicos e isso precisa ser reconhecido.

Desde quando a Bíblia começou a ser questionada? De que maneira isso enfraquece a Cristandade?

Bart Ehrman – As pessoas só começaram a notar essas diferenças na época do Iluminismo, no século XVIII. Antes disso, os estudioso da Bíblia eram teologicamente comprometidos com ela e não imaginavam que poderia haver erros. Essas descobertas são problemáticas especialmente para quem acredita que a Bíblia foi entregue a nós diretamente por Deus. Se isso ocorreu, por que não temos a Bíblia original? Por que temos apenas manuscritos escritos mais tarde e que não são iguais? Essas diferenças mostram que não existe um livro com inspiração divina que foi entregue a nós.

E como isso afeta especificamente a Igreja Católica?

Bart Ehrman – Existem estudiosos na Igreja Católica que concordam com quase tudo o que está escrito em "Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?". Mas na tradição católica a fé nunca foi sobre a Bíblia, mas sobre os ensinamentos da Igreja e sobre acreditar que Jesus é o filho de Deus. E isso não muda se a pessoa perceber ou não os erros da Bíblia. É bem diferente do fundamentalismo cristão que é tão poderoso onde eu vivo, no sul dos Estados Unidos. Aqui as pessoas acham que você só poder ser cristão se acreditar totalmente na Bíblia.

Alguns críticos do seu trabalho, especialmente o líder evangélico James White, dizem que você quer destruir a fé cristã. O que você acha disso?

Bart Ehrman – Estou tentando destruir o tipo de fé cristã de James White! (risos). Mas na verdade nada que eu faça pode destruir o Cristianismo. O problema é que há um certo tipo de fé cristã que diz que a Bíblia não tem erros e é infalível, e eu não concordo com isso. Eu não sou o único que pensa assim. As opiniões que estão descritas no meu livro são as mesmas da maioria dos estudiosos da Bíblia há muitas e muitas décadas, mas eles não costumam falar disso em público. Meu livro apenas pega o que os estudiosos dizem há muito tempo e torna disponível para os leitores normais.
Você recebeu muitas críticas de leitores por conta do livro?

Bart Ehrman – Recebi e-mails de pessoas bravas e sei que na internet há muita gente contrariada. Dizem que quero destruir sua fé, que sou o anti-Cristo. Mas a maior parte dos que escrevem ficou grata pelo livro e feliz por eu ter dito essas coisas, já que suspeitavam desses erros, mas não tinham base teológica para questionar a Bíblia.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010



Feliz Natal!


Frei Betto


Neste Natal, Deus venha amado, desarmado, disposto a conter as iras do velho e tribal Javé e, surrupiado de fadigas, derrame diluvianamente sua misericórdia sobre todos nós, praticantes de pecados inconclusos.

Venha patinando pela Via Láctea, um sorriso cósmico estampado no rosto, despido como o Menino na manjedoura, mãos livres de cajado e barba feita, a pedir colo a Maria e afago a José.Traga com ele os eflúvios das bodas de Caná e, a apetitar nossos olhos famintos, guisados de ovelhas e cordeiros acebolados, sêmola com açafrão e ovos batidos com mel e canela. Repita o milagre do vinho a embriagar-nos de mistério, porque núpcias com Deus presente, assim de se deixar até fotografar, obnubila a razão e comove o coração.

Venha neste Natal o Deus jardineiro do Éden, babelicamente plural, disposto a fazer de Ló uma estátua de açúcar. E com a harpa de Davi em mãos, salmodie em nossas janelas as saudades da Babilônia e faça correr leite e mel nos regatos de nosso afeto.

Neste Natal, não farei presépio para o Javé da vingança nem permitirei que o peso de minhas culpas sirva de pedra angular aos alicerces do inferno. Quero Deus porta-estandarte, Pelé divino driblando as artimanhas do demo, acrobata do grande circo místico.
Minha árvore não será enfeitada com castigos e condenações eternas. Nela brilharão as chamas ardentes da noite escura a ensolarar os recônditos do coração. Venha Deus a cavalo, a pé ou andando sobre os mares, mas venha prevenido, arisco e trôpego e, sobretudo, desconfiado, à imagem e semelhança de minha indigência.

Enquanto todos comemoram em ceias pantagruélicas, vomitando farturas, iremos os dois para um canto de esquina e, amigos, dividiremos o pão de confidências inenarráveis. Deus será todo ouvido e eu, de meus pecados, todo olvido, pois não há graça em falar de desgraça num raro momento de graça.

Neste Natal, acolherei Deus no meu quintal, lá onde cultivo hortaliças e legumes, e darei a ele mudas de ora-pro-nóbis, coisa boa de se comer no ensopado de frango. Mostrar-lhe-ei minha coleção de vitupérios e, se quiser, cederei a minha rede para que possa descansar das desditas do mundo.

Se Maria vier junto, vou presenteá-la com rendas e bordados trazidos do sertão nordestino, porque isso de aparecer senhora de muitas devoções exige muda freqüente de trajes e mantos, e muita beleza no trato.

Que venha Deus, mas venha amado, pois ando muito carente de dengos divinos. Não pedirei a ele os cedros do Líbano nem o maná do deserto. Quero apenas o pão ázimo, um copo de vinho e uma tijela de azeite de oliva para abrilhantar os cabelos. Cantarei a ele os cantos de Sião e também um samba-canção. Tocarei pandeiro e bandolim, porque sei das artes divinas: quem pontilha de dourado reluzente o chão escuro do céu, e provoca o cintilar de tantas luzes, faz mais que uma obra, promove um espetáculo. Resta-nos ter olhos para apreciar.

Desejo um Feliz Natal às bordadeiras de sonhos, aos homens que prenham a terra com sementes de vida, às crianças de todas as idades desditosas de maldades, e a todos que decifram nos sons da madrugada o augúrio de promissoras auroras.

Também aos inválidos de espírito apegados ciosamente a seus objetos de culto, aos ensandecidos por seus mudos solilóquios, aos enconchavados no solipsismo férreo que os impede de reconhecer a vida como dádiva insossegável.

Feliz Natal aos caçadores de borboletas azuis, artífices de rupestres enigmas, febris conquistadores a cavalgar, solenes, nos campos férteis de sedutoras esperanças.

Feliz Natal às mulheres dotadas da arte de esculpir a própria beleza e, cheias de encanto, sabem-se guardar no silêncio e caminhar com os pés revestidos de delicadeza. E aos homens tatuados pela voracidade inconsútil, a subjetividade densa a derramar-lhes pela boca, o gesto aplicado e gentil, o olhar altivo iluminado de modéstia.

Feliz Natal aos romeiros da desgraça, peregrinos da indevoção cívica, curvados montanha acima pelo peso incomensurável de seus egos pedregosos. E aos êmulos descrentes de toda fé, fantasmas ao desabrigo do medo, néscios militantes de causas perdidas, enclausurados no labirinto de suas próprias artimanhas.

Feliz Natal a quem voa sem asas, molda em argila insensatez e faz dela jarro repleto de sabedoria, e aos que jamais vomitam impropérios porque sabem que as palavras brotam da mesma fonte que abastece o coração de ternura.

Feliz Natal aos que sobrevoam abismos e plantam gerânios nos canteiros da alma, vozes altissonantes em desertos da solidão, arautos angélicos cavalgando motos no trânsito alucinado de nossas indomesticáveis cobiças.

Feliz Natal aos que se expõem aos relâmpagos da voracidade intelectual e aos confeiteiros de montanhas, aos emperdigados senhores da incondescendência e aos que tecem em letras suas distantes nostalgias.

Feliz Natal a todos que, ao longo deste ano, dedicaram minutos de suas preciosas existências a ler as palavras que, com amor e ardor, teço em artigos e livros. O Menino Deus transborde em seus corações.

A fonte do mal-estar da modernidade




“Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.”
Zygmunt Bauman

Pensar no bem do próximo é ser moralista?



Zygmunt Bauman

"Se isso é ser moralista, então sou moralista no sentido de que creio que todas as decisões que o ser humano toma em seu ambiente social (pois ninguém está sozinho, todos nós estamos conectados a outras pessoas) têm significado ético, têm um impacto em outras pessoas, mesmo quando só pensamos no que ganhamos ou perdemos com o que fazemos. A extensão planetária da televisão não nos permite mais dizer "eu não sabia" como desculpa para nossa inação. Contemplamos diariamente como se faz o mal, como se sofre a dor, e dizer que nada podemos fazer pelo outro é uma desculpa fraca e pouco convincente, até mesmo para nós próprios. Não há como negar que em nosso planeta abarrotado e intercomunicado dependemos todos uns dos outros e somos, num grau difícil de precisar, responsáveis pela situação dos demais; enfim, que o que se faz em uma parte do planeta tem um alcance global."

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O Natal do capitalismo contra o Natal de Jesus



Carlos Antonio Fragoso Guimarães

   Então... Como no lembra John, Yoko e Simone, mais uma vez é época do Natal... E o que de fato comemoramos, hoje em dia, nesta época? Será a lembrança e agradecimento pelo nascimento de uma das mais importantes personalidades da História, que canalizou e influenciou toda uma civilização ou um evento capitalista de compras, futilidades, propaganda e incentivo ao consumismo desenfreado? A estima, a fraternidade a confraternização precisam mesmo ser medidos pelo valor dos presentes? Onde está, hoje, aquele "clima" ou "cheiro de Natal" que os mais velhos sentiam nesta época, onde a alegria estava em reunir a família e falar sobre Jesus e o significado do amor? Abafados foram pela pressão neurótica do consumo, exercida pelo comércio, e pelos problemas urbanos criados pelo próprio capitalismo, hoje mais agudos que há alguns anos.

  Onde fica a representação do nascimento de Jesus, como a criança simples, um inocente excluído pelas demais pessoas, nascida num estábulo e deitada em uma manjedoura? Foi suplantada pela do capitalismo, que pôs o elitista "Papai" Noel no lugar de Cristo para incentivar o consumo... O comércio, a mídia mercantil, os cartões de crédito e os bancos comemoram... os shoppings (os novos templos) comemoram... A "igrejas" eletrônicas midiáticas comemoram (por ser mais um momento de enriquecer seus cofres pelo comércio de uma nova fé calcada em ganhos materiais)... E assim, o "deus" Mercado comemora... E o significado do Natal está se perdendo... E o espírito do Capitalismo (tão incentivado que foi pela ética protestante calvinista e afins) predomina em nossos corações...

  E, então, no dia 26 as árvores e os enfeites do Natal começam a dar lugar para os enfeites do próximo feriado (o Carnaval, também cada vez dominado e descaracterizado pelo capitalismo, cuja prévia é o Reveillon, hoje evento meramente profano, pouco tendo do sentido de uma confraternização universal ligado ainda ao Natal, como antes), e logo não se pensa mais no significado do que ocorreu há dois mil anos. E assim somos levados a ser joguetes dos interesses dos figurões do mercado...

 No fim, veja-se a que fim o comércio - incentivado por muitos fundamentalistas - o "natal" do consumo reverteu os símbolos de gratuidade e amor do Natal de Jesus. O simbolismo do nascimento humilde daquele que revolucionou a ética por uma vida de coerência pelo amor deu lugar a dinâmica materialista representada pela figura fabricada de um velho - deturpação da bonita história de São Nicolau -, que carrega um saco de presentes para os bem nascidos e que, cruelmente, faz pouco dos infortunados, já que tais presente nunca chegarão às crianças pobres.. Figura cruel que se se popularizou vestido de vermelho e branco devido ao marketing da Coca-Cola.

  Como bem reflete Frei Betto:

"Por ser festa de origem cristã, para celebrar o nascimento de Jesus, a sociedade laica e religiosamente plural a descaracteriza pela introdução da figura consumista de Papai Noel. O que deveria ser memória da presença de Deus na história humana, passa a ser mero período de miniférias centrada em muita comilança e troca compulsiva e compulsória de presentes.

"Daí o desconforto que todo Natal nos traz. Como se o nosso inconsciente denunciasse o blefe. Sonegamos a espiritualidade e realçamos o consumismo. Ótimo para o mercado. Mas o será também para as crianças que crescem sem referências espirituais e valores subjetivos, sem ritos de passagem e senso de celebração?

Longe de mim pretender restaurar a religiosidade repressiva do passado. Mas se há algo tão inerente à condição humana, como a manutenção (comer) e a procriação (sexo) da vida, é a espiritualidade. Ela existe há cerca de um milhão de anos, desde que o símio deu o salto para o homo sapiens. As religiões são recentes, surgiram há menos de dez mil anos.

"Se a espiritualidade não é fomentada na linha da interiorização subjetiva e da expressão de conexão com o Transcendente, ela corre o sério risco de, apropriada e redirecionada pelo sistema, cair na idolatria de bens materiais (patrimônio) e de bens simbólicos (prestígio, poder, estética pessoal etc). Talvez isso explique por que a maioria dos shoppings centers tem linhas arquitetônicas similares a catedrais pós-modernas...
Já não são princípios religiosos que norteiam a nossa vida. Desestimulados ao altruísmo e à solidariedade, centramos a existência no próprio umbigo - o que certamente explica, na expressão de Freud, "o mal-estar da civilização", hoje acrescido desse vazio interior que gera tanta angústia, ansiedade e depressão."


  E, assim, os feriados que foram criados para levar a pensar hoje levam a comprar. Regojize-mo-nos! A História, para os que enriqueceram com o sistema, acabou! Não há outros deuses além do capitalismo! E se a fórmula de exploração funciona para o Natal, por que não para outros feriados que, originariamente, nada tinham de comerciais? Então, até a vinda do "Coelhinho da Páscoa"!

sábado, 11 de dezembro de 2010

Complicamos para nos achar maiores do que somos



De todas as espécies
Talvez apenas o homem seja
A que transforma a alegria em tristeza
E o calor das coisas simples em frieza.
Violentando o sentir e o pensar em mero
Aspecto mensurável do que está na superfície
Pensa obter assim a ordem e o poder, ilusão do ser
Na inflamação do ego metamorforseado em intelecto

Carlos Antonio Fragoso Guimarães
12/12/2010

A sabedoria que vem do oriente...




Atenta para as sutilezas
que não se dão em palavras.
Compreende o que não se deixa
capturar pelo entendimento.

Dentro do coração empedernido do homem
arde o fogo que derrete o véu de cima abaixo.
Desfeito o véu,
o coração descobre as histórias do Hidr
e todo o saber que vem de nós.

A antiga história de amor
entre a alma e o coração
regressa sempre
em vestes renovadas.

Ao recitares "sol"
contempla o sol.
Sempre que recitares "não sou",
contempla a fonte do que és.

Jalaludin Rumi (1207-1273)

Solitário


Poema de

Augusto dos Anjos (1884-1914)

Poeta Paraibano

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!
Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!
Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
Velho caixão a carregar destroços
Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos.

O impacto do WikiLeakes



Se algo realmente importante aconteceu este mês, foi a repercussão dos "planos" e dizeres "secretos" de vários poderosos países, apresentados pelo site WikiLeakes, de Julian Assange. O que trouxe ele de novo? A constatação, por documentos oficiais, do que todos já sabiam: a existência de um grande novo Império, governado por interesses econômicos, na imposição da Paz e Guerra a depender dos novos césares a reinar em Washington, mais ou menos teleguiados por Wall Street.

Livre-arbítrio




Viktor Frankl

Pode-se tirar tudo de um homem exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – escolher a própria atitude em qualquer circunstância, escolher o próprio caminho.

Onde está a felicidade?



Lenise Marques


De pequenas coisas é a felicidade:

Manhãs frias, um casaco quente.
Cheiro de bolo assando.
Um cão que faz festa quando você chega.
A joaninha inesperada na janela.
O calor do abraço de seu amor.

É de pequenas coisas a felicidade,
não a procure na grandeza!

As asas de Deus e as gaiolas dos homens



"Deus nos deu asas do pensamento para voar, os homens nos deram as gaiolas da religião"

Rubem Alves

A Aposta no pensar diferente



Rubem Alves


Recontei uma estória para crianças e adultos com o título O pintassilgo e as rãs. Está no livrinho Estórias de bichos (Loyola). É sobre um punhado de rãs que viviam dentro de um buraco fundo. Haviam nascido lá, nada conheciam sobre o mundo de fora. Pensavam que seu buraco escuro e malcheiroso era o universo. E estavam muito felizes. Até que um pintassilgo entrou lá dentro e começou a trinar canções sobre o maravilhoso mundo de fora. As canções do pintassilgo provocaram um rebuliço. Os poetas sempre provocam rebuliços. A paz do mundo das rãs foi perturbada pelas as idéias novas. As rãs românticas acreditaram, começaram a sonhar e a fazer planos para sair do buraco. As rãs realistas, ao contrário, disseram que o pintassilgo era um mentiroso que desejava enganar as rãs com promessas falsas de um mundo diferente.

Escrevi um livrinho com o título O que é religião?. Nele eu me pus a perguntar a sociólogos, psicólogos e filósofos: “O que é religião?“. Eu desejava ouvir o que eles têm a dizer, mesmo sendo diferente daquilo que penso. Nietzsche dizia que a maneira mais fácil de corromper um jovem é ensiná-lo a respeitar mais as pessoas que pensam igual a nós, que as pessoas que pensam diferente. Os que pensam diferente são aqueles que estão vendo o mundo por um ângulo diferente do nosso. Sabendo que há uma forma diferente de ver as coisas começamos a ficar desconfiados de que, talvez, estejamos dentro do poço das rãs...

As Igrejas sempre tiveram e têm horror aos pintassilgos. Os pintassilgos, elas os chamam de “hereges“. E, como você sabe da história, milhares de pintassilgos hereges foram torrados em fogueiras, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. É preciso ter muito cuidado com rãs que moram em buracos fundos.

Algumas das pessoas a quem fiz a pergunta “O que é religião?“ me disseram que a religião é uma louca que balbucia coisas sem nexo, produtora de ilusões, serva dos poderosos, traficante de cocaína. Outros, ao contrário, afirmaram que sem a religião o mundo humano não poderia existir e que, quando deciframos seus símbolos, contemplamos a nossa imagem refletida num espelho. Para estes a religião é um sonho da alma humana... E todos os sonhos dizem a verdade.

Mas aqui preciso revelar que só fiz a pergunta a pessoas que não frequentavam os lugares sagrados, que só os observavam à distância, e que não acreditavam na sua fala...

Aí eu me perguntei se não seria necessário ouvir o próprio canto da religião. É certo que há uma religião que é como o coaxar de rãs. Mas há uma outra que é como o canto do pintassilgo... Quem sabe o pintassilgo tem razão? Quem sabe o universo é mais bonito e misterioso que os limites do poço em que vivemos? Sobre o que fala a religião?

É necessário que não nos deixemos confundir pela exuberância dos símbolos e gestos, vindos de longe e de perto, de outrora e de agora, porque o tema da canção é sempre o mesmo. Variações sobre um tema dado. A religião fala sobre o sentido da vida. Ela declara que vale a pena viver. Que é possível ser feliz e sorrir. E o que todas elas propõem é nada mais que uma série de receitas para a felicidade. Aqui se encontra a razão por que as pessoas continuam a ser fascinadas pela religião, a despeito de toda a crítica que lhe faz a ciência. A ciência nos coloca num mundo glacial e mecânico, matematicamente preciso e tecnicamente manipulável, mas vazio de significações humanas e indiferente ao nosso amor. Bem dizia Max Weber que a dura lição que aprendemos da ciência é que o sentido da vida não pode ser encontrado ao fim da análise científica, por mais completa que seja. E nos descobrimos expulsos do paraíso, ainda com os restos do fruto do conhecimento em nossas mãos...

O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia, e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando. Valerá a pena viver? A gravidade da pergunta se revela na gravidade da resposta. Porque não é raro vermos pessoas mergulhadas nos abismos da loucura, ou optarem voluntariamente pelo abismo do suicídio por terem obtido uma resposta negativa. Outras pessoas, como observou Camus, se deixam matar por idéias ou ilusões que lhes dão razões para viver: boas razões para viver são também boas razões para morrer.

Mas o que é isto, o sentido da vida?

O sentido da vida é algo que se experimenta emocionalmente, sem que se saiba explicar ou justificar. Não é algo que se construa, mas algo que nos ocorre de forma inesperada e não-preparada, como uma brisa suave que nos atinge, sem que saibamos donde vem nem para onde vai, e que experimentamos como uma intensificação da vontade de viver a ponto de nos dar coragem para morrer, se necessário for, por aquelas coisas que dão à vida o seu sentido. É uma transformação de nossa visão do mundo, na qual as coisas se integram como em uma melodia, o que nos faz sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos de um sentimento oceânico - na poética expressão de Romain Rolland - sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno de dimensões cósmicas.

“Ver um mundo em um grão de areia
e um céu numa flor silvestre,
segurar o infinito na palma da mão
e a eternidade em uma hora” (Blake).

O sentido da vida é um sentimento.

Se a pretensão da religião terminasse aqui, tudo estaria bem. Porque não há leis que nos proíbam de sentir o que quisermos. O escândalo começa quando a religião ousa transformar tal sentimento, interior e subjetivo, numa hipótese acerca do universo. Podemos entender as razões por que o homem religioso não pode se satisfazer com o pássaro empalhado. A religião diz: “O universo inteiro faz sentido”. Ao que a ciência retruca: “As pessoas religiosas sentem e pensam que o universo inteiro faz sentido“. Aquela afirmação sagrada que ecoava de universo em universo, reverberando em eternidades e infinitos, a ciência aprisiona dentro do poço pequeno e escuro da subjetividade e da sociedade: ilusão, ideologia. O sentido da vida é destruído. Que poderá restar da alegria das rãs, se o “lá fora“ que o pintassilgo cantou não existir?

Afirmar que a vida tem sentido é propor a fantástica hipótese de que o universo vibra com nossos sentimentos, sofre a dor dos torturados, chora a lágrima dos abandonados, sorri com as crianças que brincam... Tudo está ligado. Convicção de que, por detrás das coisas visíveis, há um rosto invisível que sorri, presença amiga, braços que abraçam, como na famosa tela de Salvador Dalí. E é esta crença que explica os sacrifícios que se oferecem nos altares e as preces que se balbuciam na solidão.

É possível que tais imagens jamais tenham passado pela sua cabeça e que você se sinta perdido em meio às metáforas de que a experiência religiosa lança mão. Lembrei-me de um diálogo, dos mais belos e profundos já produzidos pela literatura, em que lvan Karamazov argumenta com seu irmão Alioscha, invocando a memória de um menininho, castigado pelos pais por haver molhado a cama, e trancado num quartinho escuro e frio, fora de casa, na noite gelada. Ele fala das mãozinhas, batendo na porta, pedindo para sair, lágrimas rolando pela face torcida pelo medo. Que razões, no universo inteiro, poderiam ser invocadas para explicar e justificar aquela dor? A gente sente que aqui se encontra algo profundamente errado, eternamente errado, errado sempre, sem atenuantes, do princípio dos mundos até o seu fim. E sentimos igual quando pensamos nos torturados, nos executados, nos que morrem de fome, nos escravizados, nos que terminaram seus dias em campos de concentração, na vida animal que é destruída pela ganância, nas armas, na velhice abandonada... Poderíamos ir multiplicando os casos, sem fim...

Que razões trazemos conosco que nos compelem a dizer “não“ a tais atos? Serão nossos sentimentos apenas? Mas, se assim for, que poderemos alegar quando também o carrasco, também o torturador, também os que fazem armas e guerra invocarem seus sentimentos como garantia de suas ações? Também eles sentem... Ainda permanecem humanos...

Não, nossos julgamentos éticos não descansam apenas em nossos sentimentos. É verdade que nos valemos deles.

Mas verdade é também que invocamos o universo inteiro como testemunha e garantia de nossa causa. Vibra com o infinito a voz do coração. Cremos que o universo possui um coração humano, uma vocação para o amor, uma preferência pela felicidade e pela liberdade - tal como nós. Assim, anunciar que a vida tem sentido é proclamar que o universo é nosso irmão. E é esta realidade, âncora de sentimentos, que recebe o nome de Deus.

A religião cuidou, com carinho especial, de erigir casas aos deuses e casas para os mortos, templos e sepulcros. Nenhum outro ser existe neste mundo que, como nós, erga súplicas aos céus e enterre, com símbolos, os seus mortos. E isso não é acidental. Porque a morte é aquela presença que, vez por outra, roça em nós o seu dedo e nos pergunta:

“Apesar de mim, crês ainda que a vida faz sentido?“

Como afirmar o sentido da vida perante a morte? Que consolo oferecer ao pai, diante do filho morto? Dizer que a vida foi curta, mas bela? Como consolar aquele que se descobriu enfermo para morrer e vê os risos e carinhos cada vez mais distantes? E os milhões que morrem injustamente: Treblinka, Hiroshima, Biafra?

Tudo tão diferente de uma sonata de Mozart: curta, perfeita. Em vinte minutos, tudo o que deveria ter sido dito o foi. O acorde final nada interrompe, completa apenas.

Como afirmar o sentido da vida perante o absurdo da existência representado de maneira exemplar pela morte que reduz a nada tudo o que o amor construiu e esperou?

“Aquilo que é finito para o entendimento é nada para o coração“ (Feuerbach). Eis o problema. “De um lado, a estrela eterna, e do outro a vaga incerta...“ (Cecília Meireles). O sentido da vida se dependura no sentido da morte. E é assim que a religião entrega aos deuses os seus mortos, em esperança... Entre as casas dos deuses e as dos mortos brilha a esperança da vida eterna para que os homens se reconciliem com a morte e sejam libertados para viver. Quando a morte é transformada em amiga, não é mais necessário lutar contra ela. E não será verdade que toda a nossa vida é uma luta surda para empurrar para longe os horizontes “aproximados e sem recurso“? A sociedade é um bando de homens que caminham, lutando, em direção à morte inevitável.

Pense no que você faria se lhe fosse dito que lhe restam três meses de vida. Depois do pânico inicial... Suas rotinas diárias, as coisas que você considera importantes, inadiáveis, pelas quais sacrifica o ócio, a meditação, o brinquedo... A leitura de jornais, os canhotos dos talões de cheque, os documentos para o IR, os ressentimentos conjugais, os rancores profissionais, a pós-graduação, as perspectivas da carreira... Tudo isso encolheria até quase desaparecer. E o presente ganharia uma presença que nunca teve antes. Ver e saborear cada momento; são os últimos: o quadro, esquecido na parede; o cheiro de jasmim; o canto de um pássaro, em algum lugar; o barulho dos grilos, enquanto o sono não vem; a gritaria das crianças; os salpicos da água fria, perto da fonte... Talvez você até criasse coragem para tirar os sapatos e entrar na água... Que importaria o espanto das pessoas sólidas?

Talvez encontremos aqui as razões por que a sociedade oculta e dissimula a morte, tornando-a até mesmo assunto proibido para conversação. A consciência da morte tem o poder de libertar, e isso subverte as lealdades, valores e respeitos de que a ordem social depende. Colocando os sepulcros nas mãos dos deuses, a religião obriga a inimiga a se transformar em irmã... Livres para morrer, os homens estariam livres para viver.

Mas o sentido da vida não é um fato. Num mundo ainda sob o signo da morte, em que os valores mais altos são crucificados e a brutalidade triunfa, é ilusão proclamar a harmonia com o universo, como realidade presente. A experiência religiosa, assim, depende de um futuro. Ela se nutre de horizontes utópicos que os olhos não viram e que só podem ser contemplados pela magia da imaginação. Deus e o sentido da vida são ausências, realidades por que se anseia, dádivas da esperança. De fato, talvez seja esta a grande marca da religião: a esperança. E talvez possamos afirmar, com Ernest Bloch: “Onde está a esperança, ali também está a religião“.

(Transparências da eternidade, Verus, 2002)

sábado, 4 de dezembro de 2010

Paulo de Tarso X Jesus Cristo


Carlos Antonio Fragoso Guimarães


 Embora quase sempre desconhecido do grande público – em parte devido à resistência dos chamados “líderes religiosos” -, o estudo crítico, histórico e acadêmico da Bíblia e, em especial, do Novo Testamento, desde o século XIX vêm trazendo à luz novas perspectivas de entendimento das chamadas escrituras sagradas. Entre as mais importantes descobertas existe a crescente percepção da contradição entre as mensagens de Jesus, profundamente ética e de cunho fraterno tal como encontrada nos evangelhos, especialmente em Mateus e Lucas, e o cristianismo de mera adesão proposto por Paulo de Tarso, o real fundador do cristianismo como sendo uma religião independente, formulada por um seguidor posterior que não conviveu com Jesus e tinha sérias diferenças com os seguidores que o conheceram e com ele conviveram.

  Pela análise do estilo literário e das colocações sociais de cada texto - que é uma das formas de se estudar o material que dispomos, já que não existem originais do século I, sendo as mais antigas cópias disponíveis, já datadas, do século II -, percebe-se que as chamadas “cartas paulinas” constituem o conjunto de textos cristãos mais antigos, sendo que, da coleção de 13 epístolas atribuídas a Paulo, as atualmente consideradas autênticas e redigidas por ele, em provavelmente cerca dos anos 50 - 60 da era comum, não chegam a ser nem a metade deste número. 

  Os evangelhos propriamente ditos, que se centram na vida de Jesus, são, contudo, historicamente, em determinados pontos, mais precisos que as observações de Paulo, que quase nunca fala da vida de Cristo. Constituem eles, os evangelhos, compilações de fontes orais e de, possivelmente, registros escritos perdidos (como, por exemplo, a fonte Q, tão citada pelos estudiosos acadêmcios e que pode ser, em parte, reconstituída, pelo material dos chamados evangelhos sinóticos: Marcos, Mateus e Lucas), compostas entre os anos 65-70 (data provável da composição do evangelho de Marcos) a até aproximadamente 95 ou 100 da era cristã (quando provavelmente foi escrito o evangelho atribuído a João, o mais místico, estilizado e distante da tradição corrente, mas que de fato é uma compilação de interpretações posteriores de uma comunidade de cristãos tardios, provavelmente baseadas muito levemente em tradições orais que remontam a algum discípulo de João).


  Como vimos, apesar de serem 13 o número de epístolas atribuídas a Paulo na maioria das Bíblias ocidentais, hoje a maior parte dos pesquisadores considera que apenas seis destas epístloas tenham sido formuladas pelo próprio, pois apresentam o mesmo estilo e pontos de semelhança, sendo as demais meras composições posteriores de discípulos que queriam validar sua importância como documentos atribuindo-os a Paulo. "Elas (as cartas não-paulinas) são muito diferentes em estilo literário e conteúdo", afirma o pesquisador Pedro Vasconcellos, da PUC. Para o conservadorismo das diversas Igrejas, no entanto, todas as cartas encontradas na Bílblia cristã clássica são de autoria de Paulo. As epístolas consideradas originais são: aos Romanos, 1 e 2 aos Coríntios, aos Gálatas, aos Filipenses, a primeira à Tessalônica e a endereçada a Filêmon.

  Por sua ação missionária em meios não judeus, a figura de Paulo de Tarso teve uma importância indiscutível na constituição do cristianismo (especialmente do cristianismo “paulino”) em sua ansiedade em construir uma teologia sobre Cristo (e não de Jesus), usando elementos próximos à do pensamento mitológico grego, transformando Jesus em um semi-deus, o que causou impacto na formulação da teologia ortodoxa posterior - inicialmente no Império mas, bem depois, mais especialmente na teologia protestante, o que é indiscutível. O problema real mais grave, contudo, surge quando comparamos os dizeres e visões teológicas de Paulo com os que são atribuídos ao próprio Jesus, pelos evangelhos, especialmente o de Mateus.

 Igualmente digno de nota é de que certamente Paulo não pensava que suas cartas acabariam por ir parar na Bíblia (ao menos naquilo que se transformaria Bíblia cristã). Elas eram produtos do interesse de Paulo em esclarecer problemas e situações das comunidades que ele tinha ajudado a criar, e não súmulas teológicas indiscutíveis a serem tomadas como regra. Só muito mais tarde alguém com alguma influência política as julgariam apropriadas para formarem parte do cânone do Novo Testamento.

 Paulo, como todos sabem, foi um aspirante a doutor da Lei (sacerdote graduado). Um judeu do século I, contemporâneo de Cristo, mas que nunca o vira pessoalmente durante seu ministério, e que, profundamente zeloso da ortodoxia judaica, de início foi perseguidor implacável dos primeiros cristãos. Contudo, esta atitude agressiva iria mudar radicalmente após Paulo (na época, Saulo) ter uma visão do Cristo pós-morte. Isso o abalou o suficiente para que passasse por uma crise religiosa, se convertendo ao cristianismo e se transformando de perseguidor a divulgador. Contudo, apesar do que diz supostamente Lucas nos Atos dos Apóstolos (escrito muitos anos após a morte de Paulo, provavelmente em torno do ano 75), Paulo não procurou nas fontes apropriadas, ou seja, nos discípulos diretos de Jesus, a base da sua própria mensagem. Ao invés disto, após um contato muito superficial com alguns discípulos menores – e não com os apóstolos, o que só se daria após três anos -, Paulo se afastou para pensar sobre sua experiência da visão que teve do ente que antes perseguira. Com estas reflexões ele também questionou sua herança formal judaica, para voltar três anos depois com toda uma visão pessoal já sedimentado do seria ou deveria ser o cristianismo, moldada com elementos judaicos e gregos (Paulo era cosmopolita). Só então, depois, teve contato com alguns dos apóstolos diretos de Jesus e, nas suas palavras, destes mais precisamente apenas Pedro e Tiago, “irmão do Senhor”, sem que este contato tivesse qualquer grande impacto na sua já cristalizada visão do cristianismo. Assim, lemos pela pena do próprio Paulo em Gálatas 1:16-20:

“Não consultei carne nem sangue, nem subi a Jerusalém aos que eram apóstolos antes de mim, mas fui à Arábia e voltei novamente a Damasco. Em seguida, após três anos, é que subi a Jerusalém para avistar-me com Pedro e fiquei com ele por 15dias. Não vi nenhum apóstolo, mas somente Tiago, o irmão do Senhor. Isso vos escrevo e asseguro diante de Deus que não minto.”


 O estudo crítico das epístolas junto com os novos textos descobertos no século XX daquela época mostra que ante o que pareciam ser elementos próprios de Paulo em muitas de suas cartas, as descobertas de textos antigos, como os famosos Manuscritos do Mar Morto (que, ao contrário do que muitos pensam, nada têm de cristãos) mostrou serem elementos de discussão comum entre a classe judaica mais instruída na época, especialmente as interpretações apocalípticas dadas à singularidade da vida e borá de Cristo (o apocalipsismo era uma mentalidade constante entre os judeus da época). Porém, muito mais sério do que isso, uma parte da visão “cristã” de Paulo parece chocar de frente com os próprios ensinamentos de Jesus. Isso fica mais grandemente visível no núcleo do pensamento paulino de que a simples justificação pela fé em Jesus, especialmente nos fatos de seu sacrifício e ressurreição, serem os únicos elementos que justificariam a salvação de um crente, doutrina arduamente abraçada pela maioria das igrejas e seitas evangélicas, mas que bate frontalmente com o que Jesus diz em Mateus em 25:31-45:


«Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, há-de sentar-se no seu trono de glória. 32Perante Ele, vão reunir-se todos os povos e Ele separará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos bodes. 33À sua direita porá as ovelhas e à sua esquerda, os bodes.

34O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. 35Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, 36estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.’


37Então, os justos vão responder-lhe: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber?38Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? 39E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?’ 40E o Rei vai dizer-lhes, em resposta: ‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’

41Em seguida dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o mal e para os seus anjos!42Porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, 43era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me.’ 44Por sua vez, eles perguntarão: ‘Quando foi que te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não te socorremos?’ 45Ele responderá, então: ‘Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer.’”

 O conhecido especialista em Novo Testamento Bart D. Ehrman reflete que esta passagem de Mateus “sugere que a salvação não é apenas uma questão de crença, mas também de ação, uma idéia absolutamente ausente do raciocínio de Paulo”. Poderíamos dizer ausente não apenas de Paulo, mas das igrejas “paulinas”, especialmente as atuais igrejas televangélicas. Na passagem de Mateus acima transcrita se percebe mesmo que os escolhidos (as “ovelhas”) podem sequer ter tomado conhecimento da vida de Jesus (“Senhor, quando foi que te vimos...”). Nos dizeres de Bart D. Ehrman,

 “As ‘ovelhas’ ficam perplexas (de terem sido escolhidas como herdeiras do Reino). Elas não se lembram sequer de ter encontrado Jesus, o Filho do Homem, quanto mais de fazer essas coisas por ele. Mas ele diz a elas: ‘Cada vez que fizeste a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’. Em outras palavras, é cuidando dos que têm fome, sede, estão nus, doentes e encarcerados que é possível herdar o Reino de Deus.

“Como essas palavras se coadunam com Paulo? Não muito bem. Paulo acreditava que a Cida eterna era dada àqueles que acreditavam na morte e ressurreição de Jesus. No relato de Mateus sobre as ovelhas e os bodes, a salvação é dada a quem nunca havia falar de Jesus. É dada a quem trata os outros de forma humana e carinhosa no momento de maior necessidade. É uma visão da salvação inteiramente diferente” (Bart D. Ehrman, “Quem foi Jesus? Quem Jesus não foi”, Ed. Ediouro, 2010).

  Portanto, segundo alguns pesquisadores – e entre eles, alguns teólogos mais esclarecidos – , existe material suficiente para suspeitar que Paulo divulgou uma doutrina “paulina” em franco contraste com a mensagem de Jesus. Paulo ajudou a cristalizar uma religião sobre Cristo e não de Cristo. Edgar Jones, autor do livro Paulo: O Estranho, diz que "Jesus de Nazaré deve ser cuidadosamente diferenciado do Jesus de Paulo. Gerações e séculos passaram até que a corrente paulina com seu forte apelo em favor do Império Romano ganhasse ascendência sobre a corrente apostólica"

  O fato é que, até o século 4, existiam várias correntes de cristianismo, em linhas gerais divididas entre as que eram lideradas pelos discípulos de Paulo e outras atreladas, pelos seguidores, à tradição mais ligada aos apóstolos de Cristo. Uma que dava ênfase à transformação pessoal calcada na preocupação ética com o próximo a partir das mensagens éticas do evangelho e outra mais voltada para a conversão ideológica à própria figura de Jesus. Sobre essa divisão veja-se, por exemplo, a ênfase que está na epístola atribuída ao apóstolo Tiago, o irmão do Senhor – e que portanto, se for dele mesmo conheceu e conviveu com Jesus. Ainda que provavelmente a epístola não seja do Tiago apóstolo, parece ser de alguém que conhecia melhor os ensinos de Jesus que Paulo. Esta epístola dá a grande ênfase à caridade e às obras humanistas, criticando quem acha que apenas a fé o ajudará a purificar a alma e atingir o nível do Reino dos Céus, o que está concorde com o trecho de Mateus que já vimos. 

  Na epístola a Tiago atribuída, lê-se:


“14 Que aproveitará, irmãos meus, a alguém que tem fé, se não tiver obras? Acaso podê-lo-á salvá-lo a fé? 15 Se um irmão, porém, ou uma irmã estiverem nus e lhes faltar o alimento diário, 16 e lhes disser algum de vós: Vá em paz, aquentai-vos e farte-se, e não lhes deres o que é preciso para o corpo, de que lhes aproveitará estas palavras? 17 Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma”.

“18 Poderá logo alguém dizer: Tu tens a fé e eu tenho as obras. Mostrai-me tu a tua fé sem obras e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. 19 Tu crês que há um só Deus, fazes muito bem, mas também os demônios o crêem e tremem. 20 Queres tu, pois, saber, oh homem vão, que a fé sem obras é morta? (...) 24 Não vedes como é que é pelas obras que um homem é justificado e não somente pela fé? (...) 26 Porque bem como um corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta.”


  O professor Bart Ehrman, resumindo o pensamento da maioria dos pesquisadores e do que é mesmo ensina na maior parte dos centros de formação teológica de grandes universidades, chega mesmo a enfatizar que, de acordo com os indícios das palavras ou, ao menos do pensamento, do Jesus histórico:
“ As ‘ovelhas’ recebem sua recompensa celestial e eterna por todas as coisas boas que fizeram: alimentar os que tinha fome, vestir os despidos, cuidar dos doentes; os ‘bodes’ são punidos por não terem feitos boas ações. Um cristão posterior inventaria tal tradição? Após a morte de Jesus, seus seguidores alegaram que a pessoa se tornava justa perante Deus e receberia sua recompensa eterna ao [simplesmente] acreditar na morte e na ressurreição de Jesus, não fazendo boas ações. Portanto, essa hsitória (encontrada em Mateus 25) rema contra a corrente desse ensinamento, ao indicar que a pessoa será recompensada por suas boas ações. Logo: isso tem de remontar a Jesus.
“Em síntese, Jesus ensinou (...) que as pessoas (...) deveriam mudar seu comportamento e viverem como Deus esperava que vivessem. Isso envolvia o amor desinteressado pelos outros. Assim, Jesus teria cidade as Escrituras: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’ (Mateus 22:39, citando Levítico 19:118). Sua formulação da idéia é a Regra de Ouro: Tudo aquilo, portanto, que querei que os homens vos façam, fazei-o vós a eles” (Mateus 7:12). É difícil afirmar, de forma mais concisa, as exigências éticas da lei de Deus” (EHRMAN, 2010, “Quem foi Jesus, Quem Jesus não foi?”, PP. 177-178).

  Quando o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano, especialmente com Teodósio, a corrente paulina saiu-se vitoriosa, especialmente porque uma das cartas (Romanos) de Paulo diz textualmente que os cristãos deveriam se submeter às autoridades constituidas, no caso, Roma. "As idéias de Paulo, afáveis aos dominadores, foram definitivamente incorporadas à doutrina cristã", diz Fernando Travi, teólogo evangélico. Ora, essa submissão passiva ás autoridades políticas soa estranha a um seguidor de um revolucionário morto por estas mesmas autoridades, com o aval das autoridades religiosos locais, por seu potencial perigo político. O teólogo franciscano Jacir de Freitas Faria, mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico (PIB), de Roma, comunga da mesma opinião: "Paulo é uma figura basilar do cristianismo, mas não podemos deixar de ser críticos a ele nessa relação com o Império Romano".

 Outro ponto de controvérsia clássico sobre Paulo é a sua clara e nem sempre sutil opinião sobre as mulheres. Na carta endereçada à comunidade cristã de Colosso, ele escreve: "Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia. (...) Durante a instrução, a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Não permito que a mulher ensine, ou domine o homem".


João Pessoa, 04/12/2010

Pleasantville - A Vida em Preto e Branco



Uma parábola inteligente, regada a uma belíssima fotografia, sobre a vida, a tendência à individuação e a hipocrisia  de uma sociedade puritana e conservadora.

Carlos Antonio Fragoso Guimarães


  Em seus primeiros dez minutos, o filme Pleasantville - que no Brasil recebeu o sugestivo título de A Vida em Preto e Branco - não parece ser lá grande coisa. Na verdade, o argumento inicial soa meio tolo. Neste é apresentado um jovem tímido chamado David (Tobey Maguire, mais conhecido como o Homem Aranha), rapaz um tanto deslocado diante do mundo competitivo e desorganizado de hoje, e que é fã de uma série de TV em preto e branco dos anos 50, Pleasantville, em que todos levam uma vida certinha em uma cidadezinha adorável. Uma noite, ele e sua irmã - a moderninha, desinibida e leviana Jennifer (Reese Witherspoon, de Legalmente Loira e de E Se Fosse Verdade?) -, durante uma briga, quebram o controle remoto da TV, mas “coincidentemente” quase no mesmo instante ganham, de um estranho que “repentinamente” bate à porta vestido de técnico de tv, outro controle remoto que os transportam para Pleasantville. A partir deste ponto, porém, o filme começa a ficar interessante e vai se desenvolvendo em um crescendo sempre mais sedutor até chegar a uma mistura fina de Filosofia, Crítica Social, Arte e Poesia de encanto raramente encontrado nas produções cinematográficas de hoje em dia.

  A grande “sacada” do filme, contudo, está na forma poética der se fazer a crítica social de uma sociedade calcada em valores de fachada e que eles, habituados, acreditam ser inquestionáveis e os únicos válidos. O conservadorismo dos costumes - muito propício ao comércio, que no filme representado pelos conselheiros da Câmara de Comércio - é visto como a chave para a felicidade.

  A cidade interiorana fictícia que dá nome ao filme é, aparentemente, um paraíso dentro dos parâmetros conservadores. Suas origens puritanas entendem a dita “perfeição” como sendo a concretização de uma moralidade neurótica, que proíbe o sexo, a capacidade de reflexão individual e do desejo de mudanças. Ou seja, “Pleasantville” é a personificação “perfeita” do ideal puritano da sociedade média norte-americana, a mesma que, em sua vertente fundamentalista, ufanista e conservadora, elegeu e apoiou Bush filho duas vezes.

  Nesta cidade “modelo”, os casais dormem em camas separadas; os filhos estão sempre bem vestidos e são docilmente obedientes; o time de basquete, símbolo desta juventude, jamais perde um jogo com times de fora; as donas-de-casa estão sempre com o jantar ou os salgadinhos prontos para as visitas e a única função dos bombeiros é resgatar gatos em árvores, desconhecendo as tragédias de um incêndio. Pertencer ao Clube da Câmara de Comércio, ou ser por esta reconhecido é a mais alta honra que um cidadão de Pleasantville pode aspirar e é esta instituição que tem o dever de manter as regras do pensamento, de modo que “a História enfatize a continuidade em detrimento da mudança”, como se tenta estabelecer em uma imposta regra de conduta que tenta barrar a transformação que começa a ocorrer na cidade... resistência que chega a levar os neoconservadores em preto e branco a queimar livros que estariam ajudando na "mudança dos jovens", e que incluiria até mesmo as obras de Mark Twin e outros.

  Mas são justamente os dois irmãos, David e Jennifer, que quando transportados para Pleasantville que irão, meio que sem querer, mudar tudo isso.

São eles os instrumentos de mudança – que no filme é representado pelas cores, paulatinamente introduzidas no cenário em preto e branco onde se dá a ação - que nos irão mostrar os limites desta sociedade “perfeita” e alienada. Aliás, tanto David/Bud quanto Jennifer/Mary Sue, no processo, só conseguem ficar “coloridos” quando eles mesmos mudam.

   A parte mais dramática está justamente na reação dos neoconservadores à mudança que está ocorrendo com os jovens da cidade. O diretor e roteirista do filme, Gary Gross, é e às vezes bastante satírico ao retratar a reação retrógrada de discriminação e censura etnocêntrica por parte dos homens "decentes" da cidade. No filme, a resistência chega ao ápice com o julgamento “caça-às-bruxas” de David (Tobey McGuire) e do ingênuo Bill (Jeff Daniels). Nesta cena, o julgamente é feito pelo presidente da câmara de comércio, encimado pelo logotipo da mesma em tamanho colossal, referência explícita aos símbolos que se usam em ditaduras, como a suática da era hitlerista.

   Gross também usa de referências bem interessantes a textos clássicos, como o Gênesis bíblico, e deixa subentendido que o simpático velhinho que dá o controle remoto aos dois irmãos – e que aparentemente torce para que Pleasantville permaneça a mesma – na verdade sabia e esperava o tempo todo que Jennifer e David fossem os instrumentos da “Árvore do Conhecimento” que levariam os jovens de Pleasantville a provar do fruto “do conhecimento do bem e do mal”, o que, apesar de abalar o aparente paraíso da cidade, faz o que possam reconhecer suas potencialidades pessoais. Em uma cena memorável, a mãe modelo Betty, ao atingir o orgasmo pela primeira vez na vida, faz sincronisticamente com que árvore do seu jardim pegue fogo - numa referência à mitológica sarça ardente do Êxodus. A mudança de mentalidade dos jovens é embalada pelas músicas “subersivas” do rock, incluindo Elvis Presley e, no final, com uma emocionante chave de ouro, a canção “Across the Universe”, dos Beatles.

   "Pleasantville - a vida em preto e branco" prova uma idéia meio simples e aparentemente tola pode se tornar uma maravilhosa execução artística. Como parábola, é um poético elogio à liberdade e a tolerância. Infelizmente, um filme tão bom só foi lançado em VHS, no Brasil, em 1998, e, ao menos até o momento, dia 05 de julho de 2008, não parece que vai estar disponível em DVD...

Temas-chave do Filme: Fantasia, crítica social, fundamentalismo religioso e econômico, alienação social.
Filmes com temática semelhante: “Matrix”, dos Irmãos Wachowski; “A Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick; “Equilibrium”, de Kurt Wimmer;; “Sicko”, de Michael Moore; “Gattaca”, de Andrew Niccol; “Sonhos”, de Akira Kurosawa.


Para assistir ao filme online, clique aqui

          Ficha técnica:
Pleasantville – A Vida em Preto e Branco (Pleasantville)

Estados Unidos - 1998, 121 Minutos de duração

Direção, Roteiro e Produção: Gary Ross

Música: Randy Newman
Diretor de Fotografia: John Lindley
Montagem: William Goldenberg
Desenhista de Produção: Jeannine Claudia Oppewall


Elenco: Tobey Maguire (David Wagner / Bud Parker), Reese Witherspoon (Jennifer Wagner / Mary Sue Parker), Jeff Daniels (Bill Johnson), Joan Allen (Betty Parker), William H. Macy (George Parker), J. T. Walsh (Big Bob), Don Knotts (Técnico de TV), Marley Shelton (Margaret Henderson), Jane Kaczmarek, Paul Walker (Skip), Dawn Cody (Betty Jean), Maggie Lawson (Lisa Anne), Andra Taylor (Peggy Jane)

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domingo, 14 de novembro de 2010

O Brasil não se reduziu a duas simples cores



Este desenho, ou infográfico, foi feito por Bruno Barros.


A divisão bicolor do Brasil corresponde à realidade?

Carlos Antonio Fragoso Guimarães

O resultado das urnas não foi algo maniqueisticamente redutível a uma divisão entre Norte/Nordeste e Sul/Sudeste, entre lugares onde ganhou Dilma ou Serra, sem levar em consideração a proporção real de votos dados a um e outro em cada local.

Esse reducionismo simplório entre vermelhos e azuis levou às expressões xenófobas de patricinhas e mauricinhos bem-nascidos mas pouco sábios para entender estatísticas. A vitória azul só podemos dizer que foi completa em dois estados apenas, e ambos do Norte, pois em lugares como o Rio Grande do Sul e mesmo São Paulo, a candidata petista teve votação expressiva, sem falar que estados como Rio de Janeiro e Minas Gerais, até onde se sabe, fazem parte do sudeste. Contudo, o reducionismo midiático, com interesses bem voltados à direita, pintou o mapa do Brasil em duas cores, como se isso resolvesse a situação entre a complexidade do real e os interesses (e preconceitos) que tentam dividir o Brasil e os brasileiros.

A República Proclamada por Acaso




Artigo do jornalista Carlos Chagas

Amanhã é dia de festa, de divulgação de versões patrióticas sobre a Proclamação da República, mas, também, de acertamos contas com a memória nacional.

O saudoso e incomparável Hélio Silva, dos maiores historiadores brasileiros, titulou um de seus múltiplos livros de “A República não viu o amanhecer”. Contou em detalhes, fruto de muita pesquisa, que a República foi proclamada por acaso. As lições daquele episódio não devem ser esquecidas. Vale lembrá-las com outras palavras e um pouquinho de adendos que a gente colhe com o passar do tempo, junto a outros historiadores e, em especial, pela leitura dos jornais da época.

Desde junho que o primeiro-ministro do Império era o Visconde de Ouro Preto. Vetusto, turrão, exprimia os estertores do chamado “poder civil” da época, muito mais poder do que civil, porque concentrado nas mãos da nobreza e dos barões do café, com limitadíssimas relações com o cidadão comum. O Brasil havia saído da Guerra do Paraguai com cicatrizes profundas, a começar pela dívida com a Inglaterra, mas com novos personagens no palco. O principal era o Exército, composto em maioria por cidadãos da classe média, com ênfase para os menos favorecidos. Escravos aos montes também haviam sido libertados para lutar nos pântanos e charcos paraguaios. Nobres lutaram, como Caxias e Osório, mas a maioria era composta daquilo que se formava como o brasileiro médio.

Ouro Preto, como a maior parte da nobreza, ressentia-se daqueles patrícios fardados que começavam a opinar e a participar da vida política. Haviam sido peça fundamental na abolição da escravatura, em 1888. Assim, com o Imperador já pouco interessado no futuro, o governo imperial tratou de limitar os militares. Foram proibidos de manifestações políticas, humilhados e punidos, como Sena Madureira e tantos outros.

Havia, nos quartéis e em certos círculos políticos, um anseio por mudanças. Até o Partido Republicano tinha sido criado no Rio e depois em São Paulo, mas seus integrantes estavam unidos por um denominador comum: República, só depois que o “velho” morresse, pois era queridíssimo pela população. E quem passaria a mandar no Brasil seria um estrangeiro, o Conde d’Eu, francês, marido da sucessora, a princesa Isabel.

Cogitava, aquele poder civil elitista, de dissolver o Exército, restabelecendo o primado da Guarda Nacional, onde os coronéis e altos oficiais careciam de formação militar. Eram fazendeiros, em maioria. Os boatos ganhavam a rua do Ouvidor, no Rio, onde localizavam-se as redações de jornal.

Na tarde de 14 de novembro movimentam-se um regimento e dois batalhões sediados em São Cristóvão. Com canhões e alguma metralha, ocupam o Campo de Santana, defronte ao prédio onde se localizava o ministério da Guerra, na região da hoje Central do Brasil. Declararam-se rebelados e exigiam a substituição do primeiro-ministro, que lá se encontrava com seus companheiros. Comandados por majores, estava criado o impasse: não tinham como invadir o prédio, por falta de um chefe de prestígio, mas não podiam ser expulsos, já que as tropas imperiais postadas nos fundos do ministério não se dispunham a atacá-los. O Secretário-Geral do ministério da Guerra era o marechal Floriano Peixoto, que quando exortado por Ouro Preto a investir à baioneta contra os revoltosos, pois no Paraguai haviam praticado feitos muito mais heróicos, saiu-se com frase que ficou para a História: “Mas no Paraguai, senhor primeiro-ministro, lutávamos contra paraguaios…”

Madrugada do dia 15 e os majores, acampados com a tropa revoltada, lembram-se de que ali perto, numa casinha modesta, morava o marechal Deodoro da Fonseca, há meses perseguido pelo governo imperial, sem comissão e doente. Dias atrás o próprio Deodoro recebera um grupo de republicanos, com Benjamim Constant, Aristides Lobo e outros, aos quais repetira que não contassem com ele para derrubar o Imperador, seu amigo.

Acordado, Deodoro ouve que dali a poucas horas Ouro Preto assinaria decreto dissolvendo o Exército. Não era verdade, mas irrita-se, veste a farda e dispõe-se a liderar a tropa. Não consegue montar a cavalo, tão fraco estava. Entra numa carruagem e acaba no pátio fronteiriço ao ministério da Guerra. Lá, monta um cavalo baio e invade o prédio, com os soldados ao lado, todos gritando “Viva Deodoro! Viva Deodoro!” Saudando-os com o agitar o boné na mão direita, grita “Viva o Imperador! Viva o Imperador!”. Apeia e sobe as escadarias, para considerar Ouro Preto deposto. Repete diversas vezes : “Nós que nos sacrificamos nos pântanos do Paraguai rejeitamos a dissolução do Exército.” Estava com febre de 40 graus. O Visconde, corajoso e cruel, retruca que “maior sacrifício estava fazendo ele ouvindo as baboseiras de Vossa Excelência!” Foi o limite para Deodoro dizer que estava todo mundo preso.

O marechal já ia voltando, o sol ainda não tinha nascido e os republicanos, a seu lado, insistem para que aproveite a oportunidade e determine o fim do Império. Ele reluta. Benjamin Constant lembra que se a República fosse proclamada naquela hora, seria governada por um ditador. E o ditador seria ele, Deodoro. Conta a lenda que os olhos do velho militar se arregalaram, a febre passou e ele desceu ao andar térreo, onde montou outra vez o cavalo baio. A tropa recrudesceu com o “Viva Deodoro! Viva Deodoro!” e ele agradeceu com os gritos de “Viva a República! Viva a República!”

Não havia populares nas proximidades, muito menos operários. Aristides Lobo escreverá depois em suas memórias que “o povo assistiu bestificado a proclamação da República.”

Preso no Paço da Quinta da Boa Vista, com a família, o Imperador teve 48 horas para deixar o Brasil. Deodoro quis votar uma dotação orçamentária para que subsistissem no exílio. D. Pedro II recusou, levando apenas pertences pessoais. A República estava proclamada.

Conta-se o episódio pelo dia que transcorre amanhã, apenas? Não. Conta-se porque a História do Brasil é feita de episódios como esse…

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Uma análise psicológica junguiana do filme Labirinto, a Magia do Tempo, de Jim Henson (1986)




Carlos Antonio Fragoso Guimarães


“Desenvolver a fantasia significa aperfeiçoar a humanidade”.

Carl Gustav Jung



I - Introdução

Este pequeno artigo visa a uma interpretação do filme Labyrinth (no Brasil, Labirinto – A Magia do Tempo) do diretor norte-americano Jim Henson, o criador dos Muppets e da Vila Sezamo.
Em nossa análise, partimos do pressuposto de que a linguagem do filme é de conotação mítica e, como bem expressam os mitólogos, todo o mito possui um significado simbólico e imagético (a linguagem própria da psique profunda) em que se entrelaçam quatro dimensões distintas: o mito trata de uma visão simbólica sobre os processos de desenvolvimento das forças psíquicas internas próprias do ser humano. Essas forças precisam, para se atualizar, de se enfrentar com os aspectos sociais que se apresentam historicamente, ao mesmo tempo que fazem referência às forças inerentes aos inconsciente e às pulsões mais básicas do ser humano ( a floresta ou o oceano dos contos de fadas populares ), que são as raízes que ligam o ser às estruturas evolutivas estimuladas pelo próprio ambiente e o cosmos inteiro. Nesse sentido, o filme de Henson parece, quer seus autores tivessem ou não consciência disto – o produtor do filme, George Lucas, da série Guerra nas Estrelas, foi profundamente influenciado pelos estudos em mitologia de Joseph Campbell - refletir o esquema básico da mitologia conhecido como A Jornada do Herói – no caso do filme em questão, da Heroína, que parte de um estado de consciência imatura, passa por desafios, e retorna mais amadurecida, com uma nova percepção de si mesma e da vida.

II – A Jornada da Heroína

O psicanalista e psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) foi um dos mais importantes estudiosos a se debruçar sobre os aspectos psicológicos dos mitos no século XX. Ele demonstrou que a linguagem mais profunda da psique se expressa simbolicamente e que os mitos, que são frutos da criação coletiva, apontam para aspectos do desenvolvimento humano expressos de modo simbólico através do imaginário.
Suas idéias foram retomadas e desenvolvidas por pesquisadores como Mircea Eliade e Joseph Campbell. Ambos dirão quase a mesa coisa: “as imagens e símbolos expressam as mais profundas modalidades do ser” (ELIADE, 1996), ou, como diz Campbell, os contos e histórias que tem como base uma figura heróica – que não necessariamente precisa ser um indivíduo, mas também pode ser um grupo de pessoas – expressam figuradamente as capacidades de superação e transcendência presentes em todos. Isso lembra os conceitos de processo de individuação, de Jung, ou da confiança básica dos psicólogos humanistas na capacidade de auto-atualização ou auto-realização, como postulam Carl Rogers e Abraham Maslow. Deste modo, costumava dizer Campbell que, em havendo condições favoráveis mínimas, cada pessoa poderá ter a chance de desenvolver suas capacidades a partir dos desafios da vida, como ocorrem nos diferentes mitos do herói:

“Siga sua bem-aventurança até lá, onde há um profundo sentido do seu ser, lá onde seu corpo e sua alma querem ir. Quando você alcançar essa sensação, fique aí e não deixe ninguém arrancá-lo desse lugar. E portas se abrirão onde você nem sequer imaginava que pudesse haver algo."

Em uma análise mais psicológica, Jung dirá que o herói de um conto ou mito é o ego que se vê repentinamente envolto em desafios de toda a ordem, freqüentemente para lhe fazer ver que o mundo é mais amplo e mais dinâmico do que ele imagina. Muitos dos desafios e monstros de sua jornada advém do seu meio, mas eles estão ligados igualmente às forças internas do inconsciente. Deste modo, parte da força que o Ego percebe serem externas são, de fato, projeções de elementos que o próprio sujeito possui e de que seu ego não faz idéia, elementos esses - como coragem, generosidade, compaixão – que só se sabe que se tem diante de desafios.

Neste sentido, o filme de Henson expressa à perfeição essa jornada de auto-conhecimento e maturação. Talvez isso explique, em grande parte, o fascínio deste filme que, apesar de não ter sido um sucesso de bilheteria à época de seu lançamento (1986) se transformou em um Cult, marcou a infância e a adolescência de muita gente e vem se consolidando com uma legião de aficcionados que vem crescendo neste últimos 24 anos.

III – Sinopse da história e interpretação do seu significado.

A jovem Sarah Williams (interpretada pela belíssima Jennifer Connelly que, à época, ainda não tinha completado 15 anos), é uma garota sensível, que adora os personagens do livro Labyrinth. O filme inicia-se com Sarah, vestida ao estilo medieval, citando os trechos finais do livro.
Logo depois, ao badalar do relógio, a jovem é despertada de seu mundo de fantasia e ficamos sabemos que Sarah é uma jovem adolescente órfã de mãe e que se sente ofendida pela madrasta, que a faz ficar em casa tomando conta de seu meio irmão Toby, enquanto ela e o pai saem para se divertir. Sarah se acha impedida de ter vida própria (não é isso o que sete a maioria dos adolescentes, que se vêm crescidos demais para serem vistos como crianças, mas ainda jovens demais para terem a liberdade que sonham?) e, inevitavelmente, culpará os pais e o irmãozinho de menos de dois anos por isso.
A ver que um de seus ursinhos estava faltando em seu quarto, Sarah corre ao quarto do irmão e, irada, pega o ursinho do chão, afirmando que odeia o bebê. Ao mesmo tempo, devido à tempestade que cai lá fora, o bebê, visivelmente assustado com os trovões e relâmpagos, chora desesperadamente. Sarah começa a desabafar contando a história de uma linda garota que era obrigada a cuidar de seu irmão menor. Não agüentando mais o choro do bebê ela expressa o desejo de que o rei dos Gnomos, Jareth (interpretado pelo famoso roqueiro David Bowie) viesse e levasse o irmão para seu reino mágico. E é exatamente o que acontece. Ao agir assim, Sarah demonstra ser como todos os heróis: uma pessoa imperfeita, falível, mas que reconhece seu próprio erro. Ou seja, estava pronta pela vida (e pelo destino) a adentrar em uma aventura que permitesse amadurecer suas qualidades positivas, apesar de seus traços ainda infantis, psicologicamente falando.

É assim que, arrependida do que desejou, Sarah implora ao Rei dos Duendes (que demonstra uma clara “queda” pela mocinha) que devolva o irmãozinho. Jareth de início tenta convencer Sarah, por meio de um afago ao ego, de que estar sem o irmão traria vantagens para ela. Sarah, contudo, já despertou o suficiente para superar essa tentação e implora pela volta do irmão. Jareth então diz que ela o terá de volta se conseguir, dentro de 13 horas (e ai vemos o tempo psicológico transcendendo o tempo cronológico. São 13 horas porque no mundo do desenvolvimento interno o tempo não segue o padrão do relógio que, como sabemos, marca apenas doze horas em seu mostrador), chegar ao centro do labirinto mágico, onde está seu castelo, ladeado pela cidade dos gnomos ou duendes. Vemos que a aventura de Sarah se dá em um espaço diferente do trivial, o espaço da significação psicológica, com características próprias. A busca pelo irmão no centro do labirinto é o caminho de reconhecimento de suas próprias capacidade. Sarah busca o centro do labirinto e, com isso, caminha ao reconhecimento de seu próprio Self, seu centro interno, sua essência.
Sarah recebe o chamado da aventura e não o recusa. Ela assume sua decisão de ir em busca do irmão, passando por inúmeros perigos e dificuldades, mas que a fará conhecer amigos e ajudantes pelo caminho, como o aparentemente inútil Hogle, o afetuoso grandalhão Ludo e o espevitado Fox Terrier Sir Dydimus. Ou seja, ela adentra no modelo do herói: por escolhas acaba por cair em uma aventura e se lança em busca em meio desconhecido, o labirinto, onde passará por dificuldades e enfrentará os perigos até se encontrar, finalmente, com seu grande rival, Jareth, encontrando, pelo caminho, ajuda improváveis.

Cada uma dessas estranhas criaturas ajuda Sarah a entender parte de sua própria realidade e capacidade íntima.

No final, Jareth, aparentemente querendo fazer o mal, é como Mefistófeles no Fausto de Goethe: por mais que queira fazer o mal, acaba por fazer o bem. Jareth é a representação das projeções da própria Sarah, sua sombra, sua personificação de capacidades boas e más. No final, Jareth é seu professor. Poderia, como tenta, fazer Sarah fracassar em seu processo de individuação, quando ele mais uma vez a tenta ao dizer que daria tudo o que ela mais desejasse se ela o amasse e obedecesse. Sarah, contudo, aprendeu com sua viagem por este mundo que esta promessa era mais uma armadilha. Muita gente que assistiu o filme sonha ou desejava que a menina aceitasse o convite de Jareth, o que equivaleria a vender sua alma. Mas a moça integrou a força sedutora dos arquétipos em si, fortaleceu o Ego (que não é mais egoísta) e triunfa do último grande desafio que lhe foi dado: a tentação de viver fora do mundo real (o que derruba muita gente no universo da fantasia com traços da loucura).

Quando, finalmente, Sarah reconhece, na cena do enfrentamento final, que Jareth não tem poderes sobre ela, ela o derrota – ela integrou os aspectos de seu próprio inconsciente, reconhecendo que os poderes do rival são dela mesma – e, supera seu erro e sai da experiência triunfante e amadurecia, renovada e possuidora de um novo patamar de identidade.
O incrível é que essa mesma sensação de completude e alegria atinge uma parte grande das pessoas que assistem o filme, jovens e adultos, indicando que ele desperta nos mesmos uma empatia inconsciente com a personagem central.
A jornada de Sarah pelo labirinto é uma metáfora da jornada ao auto-conhecimento que todos nós somos convidados a fazer pela vida, mas que poucos têm coragem de aceitar.

FICHA TÉCNICA
Diretor: Jim Henson
Elenco: David Bowie, Jennifer Connelly, Toby Froud, Brian Henson, Shelley Thompson, Christopher Malcolm, Natalie Finland, Ron Mueck, Daivd Barclay.
Produção: David Lazer, Eric Rattray.
Roteiro: Lewis John Carlino, Jim Henson, Edward C. Hume, Terry Jones, John Varley.
Fotografia: Alex Thomson
Trilha Sonora: Trevor Jones
Duração: 101 min.
Ano: 1986
País: EUA – Reino Unido
Gênero: Aventura Fantasia


João Pessoa, 05 de novembro de 2010