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terça-feira, 20 de abril de 2010

A Formação do Cristianismo depois de Jesus - Parte II




Em 66 d. C., a maior parte dos judeus se rebelaria contra Roma e seu jugo. A maior parte dos cristãos, que eram pacifistas, se mudaria para cidades neutras, quase nada sofrendo. A destruição definitiva do Templo por Tito e seus soldados fora entendida pelos cristãos como a concretização das palavras de Cristo de que não restaria pedra sobre pedra da esplêndida edificação, refeita há mais de setenta anos por Herodes, o Grande, e que era o coração mesmo da religião judáica. Os judeus que foram dispersos viram com despeito o fato de que os judeus cristãos estavam seguros em cidades ao redor do Jordão, na galiléia e em núcleos judeus no Egito e Síria, onde, aliás, haviam outras correntes do judaísmo com pontos em comum com o cristianismo, como os Essênios e os Terapeutas, e sabiam o que estes diziam a respeito da destruição do Templo. O ódio que começou a se alastrar entre os judeus dispersos e os cristãos acabariam por cindir definitivamente as duas correntes.

Com a expulsão dos judeus de Jerusalém e da Judéia - a diáspora -, os apóstolos e seus discípulos passaram a ser mais atuantes entre os judeus mais abertos à mensagem de Jesus em vários centros cosmopolitas, indo de Damasco à Roma. Enquanto Felipe marcou profunda presença na Samaria e em Cesaréia, João seria o responsável pela fundação de um dos mais importantes núcleos cristãos em Éfeso e outras regiões da Ásia Menor.

Pedro, ao lado de Paulo, era um dos mais infatigáveis divulgadores de Jesus como um ser muito mais divino que humano, esquecendo-se que o próprio Jesus fazia questão de estabelecer a irmandade de todos os filos de Deus, sendo ele o que conseguiu atingir o propósito da vida e se fazer UM com com os desígnios do Pai. Sua pregação se fez em especial pelas regiões adjacentes à Ásia Menor, Capadócia, Bitínia e Ponto, tendo ido várias vezes à própria Roma até ser finalmente cruxificado na cidade imperial em 64 d. C. Foi por intermédio de Pedro e Paulo, exatamente pela presença de ambos em Roma, que se atraiu a atenção e a conversão não só de judeus, como de muitos gentios. Com Pedro, o cristianismo viria a adotar muitos dos elementos do judaísmo, em especial sua ênfase escatológica em um fim dos tempos que estaria próximo, e várias festas tradicionais judáicas, em especial a Páscoa. Com o tempo, a mescla de cerimônias judáicas seria visto pelos cristãos romanos como uma brecha para que outras cerimônias e vestimentas, dos antigos ritos pagãos, fossem igualmente mesclados ao cristianismo.

Como nos fala muito lucidamente Albert Paul Dahoui, "a diáspora facilitou o desenvolvimento do cristianismo, pois o movimento dos judeus de um lugar para outro, suas ligações com o Império, especialmente financeiro, ajudado pelo comércio, pelas estradas e pela paz romanas, acelerou a expansão do novo credo. No entanto, se em Jesus e em Pedro (especialmente neste último) o cristianismo era judeu, em Saul metamorfoseou-se em grego e no catolicismo tornou-se romano" (DAHOUI, 1999, volume VII, p. 301).

A partir da década de 70 em diante, as primeiras edições dos textos que dariam orígem aos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) começaram a circular entre as comunidades cristãs, mas estas sementes estavam em meio a muitos outros textos que foram totalmente perdidos, ou que nos chegaram na forma de fragmentos ou como textos apócrifos, ou seja, não reconhecidos pela Igreja. Hoje sabemos, como já o dissemos, que os três sinóticos citados acima se basearam em uma fonte em comum que, antes, se pensou ser um texto primitivo do que seria o Evangelho de Marcos, mas hoje já se ventila a hipótese de que esta fonte (quelle em alemão), o famoso evangelho Q seria um conjunto de aforismas e anotações dos ditos de Jesus muito próximos do que se acha inscrito no Evangelho de Tomé, podendo ter algumas anotações biográficas em um outro texto que faria parte do Evangelho de Mateus. Já o Evangelho atribuído a João teve o início de sua redação no fim do século I e tem um linguajar bem diferente, especialmente diante do público alvo a que se dirigia, ou seja, aos gregos. É o mais gnóstico dos quatro evangelhos e o mais próximo, no seu espírito, ao evangelho de Tomé, mas é, igualmente, o que melhor permite ver que foi amplamente modificado em vários pontos, ou seja, que foi escrito por mais de uma mão. Mas, de qualquer forma, deve-se ter em mente que todos foram escritos tendo por objetivo divulgar uma imagem do Cristo, e muito do que foi narrado (e não foi adulterado posteriormente por copistas e editores) ainda assim deve ser visto com certo cuidado, pois se baseiam nas memórias de discípulos das ocorrências de quase quarenta anos antes.

O ministério de Paulo foi, de longe, o mais atribulado do dos demais discípulos do Cristo, ainda que Paulo nunca tivesse tido contato com o próprio Jesus quando este vivia na Terra. Impetuoso, Paulo viajou por quase todo o Império onde haviam comunidades judáicas e teve sérios atritos com os demais discípulos. Tentou apresentar Cristo como um dos grandes Filósofos iniciados, em Atenas, mas teve um êxito desprezível neste primeiro momento. Suas viagens estão narradas nos Atos dos Apóstolos e em documentos vários, como suas Epístolas (ao menos, às que lhe são atribuídas e que não sofreram ainda maiores interferências posteriores que os Evangelhos, sem falar de outras que simplesmente desapareceram depois do século IV). Morreu em Roma, após anos de prisão. Foi este o período em que Saul se transformou em Paulo, o apóstolo dos gentios, e que devido à distância com os demais colegas discípulos e aos anos em meio a várias outras culturas, teve tempo de formar a primeira Teologia sistemática cristã que é um tanto diferente da mensagem original de Cristo, em especial por conter uma forte ideologia patriarcal bem judáica, conter um halo mítico a existência de Cristo e que mais ênfase dá na figura de Jesus que em sua mensagem. Foi dele, embora inconscientemente - ou talvez nem tanto assim - a idéia que, mal interpretada, se insttituiu o dogma da Ressureição física - que por um erro de interpretação posterior, que passou por cima do que Paulo chamava de "Corpo Espiritual" do Cristo, para dar início a uma tradição que iria admitir a volta de Cristo à vida no próprio corpo físico, o que provocou interpolações nos sinóticos, como no caso de João, em que fizeram Tomé - talvez exatamente o mais lúcido dos discípulos - a tocar as chagas de um cadáver que teria retomado a vida, e não pela presença gloriosa de Cristo que se fez presente e visível através da materialização de seu espírito.

Foi Paulo também que instituiu grande parte da idéia de que Cristo morreu para redenção do mundo, tirando parte da responsabilidade pessoal de cada um por seu próprio progresso espiritual, bastando qualquer pessoa se converter para ser salva, devido à fé, e a qualquer tempo durante a vida, e ganhar o paraíso. Esta idéia foi retomada com ardor pelos protestantes 15 séculos depois, e seria a principal marca das Igrejas Reformadas.
Mas a teologia de Paulo foi realmente levada em conta quando as primeiras gerações de cristãos, as que conheceram Jesus ou seus apóstolos, já havia desaparecido. Com o desejo de Constantino de ter um Império com um só Imperador e uma só Igreja, as epistolas de Paulo (já devidamente "editadas" junto a outros documentos que lhe eram atribuídos) foram usados como fundamento para o sistema da teologia Católico-Romana.

Nos fala Alberto Paul Dahoui que "foi através de Paulo que nasceu a teologia cistã, mas este fato não aconteceu de imediato. Um século depois de morto, Saul havia sido esquecido e somente quando as primeiras gerações de cristãos haviam passado, a tradição oral dos apóstolos desapareceu, e as heresias começaram a desorientar o espírito cristão, é que as epístolas de Paulo foram ressuscitadas. Passaram a servir de arcabouço para um sistema de fé que uniu as esparsas congregações em uma poderosa Igreja Central
"Saul havia criado um novo mistério, uma nova forma do drama da ressurreição, que iria sobreviver a todas as demais versões. Ele mesclou a ética utilitária dos judeus com a metafísica dos gregos e transformou o Jesus dos evangelhos no Cristo Invicto da teologia. Para Saul, Cristo morreu na cruz para a redenção do mundo, pois, com sua morte, ele retirou o pecado original do orbe e oferecia, com sua paixão na cruz, a salvação.

"Saul continuaria, entretanto, obscuro e esquecido até que a reforma protestante de Lutero levantou-o das cinzas do passado, e Calvino também encontrasse nele os textos na crença da predestinação. Os dois não entenderam que Saul havia preconizado que o homem justo será salvo pela fé, e não que todos seriam salvos pela fé (...). Com o desvirtuamente das palavras de Saul, qualquer um que aceitasse Jesus estaria imediatamente salvo.

"O protestantismo foi o triunfo de Saul sobre Pedro, e o fundamentalismo foi o involutário triunfo de Saul sobre Cristo e ambos só atestaram que a doutrina de Jesus foi parcialmente esquecida. Jesus, que queria que a maior prova do homem fosse a virtude, acabou sendo substituído pela [mais cômoda] fé preconizada por Saul. Para Jesus, o reino de Deus era uma nova atitude íntima perante a vida, que desembocaria numa sociedade mais justa e fraterna, e para os que usaram Saul de forma indevida, era apenas adesão" (Dahoui, 1999, volume VI, pp. 306-307).

Mais adiante, o mesmo autor arremata:

"O cristianismo não iria destruir o paganismo. Pelo contrário, o novo cristianismo [Romano, mais tarde cindido entre as duas Igrejas Católicas, a do Império Romano do Ocidente e do Império Romano do Oriente, conhecido como Igreja Católica Ortodoxa], que nada tinha a ver com Yeshua de Nazareth, iria adotar os ritos e idéias dos pagãos, assim como de outras religiões existentes na época. Substituiria a profusão de deuses subordinados a um distante Deus criador, por uma multidão de santos subalternos a Jesus Cristo. O espírito grego ressurgiu na teologia e na liturgia da igreja. A língua clássica grega foi usada durante séculos na liturgia, para depois ser substituída pelo latim, mas, mesmo assim, tornou-se o veículo da literatura e ritual cristãos".

Nesse sentido, convém notar que o estabelecimento do dia 25 de dezembro como sendo o dia de Natal do Senhor convinha ao Império por ser a data tradicional de celebração do solstício de inverno, onde se celebrava a volta do Sol Invictus, símbolo adotado por Constantino. O solstício de inverno era também comemorado em outras culturas pagãs e representava o ponto máximo do inverno, o ponto onde recomeçaria o ciclo da volta do sol.
As conseqüências da oficialização e institucionalização do cristianismo pelo Império - ou melhor, a adaptação romana da mensagem original do Cristo - não tardou a dar estranhos frutos: exatamente na época da "conversão" de Constantino (entre aspas, pois o imperador manteve implicitamente a liberdade de culto às demais religiões e aos muitos ritos, tradições e costumes pagãos, sendo ele mesmo o incentivador de que todos os considerassem uma espécie de encarnação divina, adotando o emblama tradicional do Sol Invictos dos cultos pagãos como estandarte e selo próprios) em 325, sendo o bispo de Roma, à época, Silvestre I, a promoção pelo Imperador, por desejo pessoal, com base num jogo de táticas políticas, e sem levar em consideração o que pensasse o bispo (ou papa) de Roma, do Concílio de Nicéia, tendo expulso neste perto 1.700 participantes do conclave composto por 2.048 pessoas, exatamente os que se recusaram a aceitar a imposição do imperador em declarar, a partir de então, como meio de realçar ainda mais as ligações entre a religião e o Estado de um Único Poderoso Imperador, que Jesus não era tão só o filho de Deus, mas o próprio Deus, e, portanto, Imperador do Universo do qual Roma e seu Império deveriam ser espelhos. Desde então, passou-se a construção de uma Teologia Católico Romana, que se esforçou para eliminar qualquer traço de oposição ou crítica ao que passou a ser imposto como o cristianismo oficial, pleno de traços e ritos adaptados do paganismo, incluindo o uso de roupas sarcerdotais especiais, o uso do incenso, ritos, imagens, etc.

Portanto, depois de vinte séculos, só agora o esforço devotado de inúmeros pesquisadores sérios em todo o mundo pôde levantar o mofo e a poeira de séculos de dogmas e doutrinas espúrias e fazer sobressair, aos poucos, e ainda em seus luminares mais brandos, parte da real mensagem que um meigo jovem da Galileia teve a genialidade e a coragem de lançar ao mundo e que, mesmo que truncada, maquiada e manipulada, teve força suficiente para modificar a história, se mostrando ainda mais linda e impressioanante em sua pureza original que a versão mítica e enviesada que as Igrejas impuseram às massas nestes quase dois mil anos e que, no máximo de deturpação da mensagem de Jesus, deu origem à aberrações sangrentas como as Cruzadas, a "Santa" Inquisição (que, ao contrário do que se pensa, ainda está ativa, embora de forma mais branda, no chamado Conselho para Defesa da Fé, no Vaticano, de que não escaparam de terem suas obras censuradas nem Pierre Teilhard de Chardin, nem Leonardo Boff), e movimentos extremistas como a TFP, por exemplo, no lado Católico e, no lado dos evangélicos, a Igreja Universal do Reino de Deus, entre outros históricos e tristes exemplos. Mas, aos poucos, a mensagem original está sendo regatada, quem sabe para fazer com que o Cristo realmente renasça em cada um e por cada um...

João Pessoa, Paraíba, 15 de janeiro de 2000


Bibliografia

Baigent, Michael; Leigh, Richard & Lincoln, Henry. O Santo Graal e a Linhagem Sagrada. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997.

Charlesworth, James H. Jesus Dentro do Judaísmo. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1992.
Crossan, Jean Dominic. O Jesus Histórico. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1994.

Dahoui, Albert Paul. Jesus, o Divino Mestre. Niterói, Editora Heresis, 1999.

Miranda, Hermínio C. O Evangelho de Tomé - Texto e Contexto. Niterói, Editora Arte e Cultura, 1992.

O'Grady, Joan. Heresia - O Jogo de Poder das seitas cristãs nos primeiros séculos do cristianismo. São Paulo, Editora Mercuryo, 1994.

Tricca, Maria Helena de Oliveira. - Apócrifos, Os Proscritos da Bíblia. São Paulo, editora Mercuryo, 1989.

Welburn, Andrew. As Origens do Cristianismo. São Paulo, Editora Best Seller, 1997.

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